quinta-feira, 27 de abril de 2017

no coração da loucura

Para chegar ao coração da loucura é preciso caminhar. Dobrar as esquinas, entre ruas não nomeadas, seguir adiante frente a informações imprecisas e moradores que certamente não saberão indicar uma direção correta, prosseguir por entre as grades do hospital psiquiátrico Pedro II, atravessar o jardim permeado de folhas mortas, virar à esquerda, cruzar a sala do acervo do Museu do Inconsciente e ali, no final do corredor, acessar o acervo das obras realizadas pelos artistas que residiram no Instituto Nise da Silveira. Ao entrar na sala, cheia até o teto, de obras as mais diversas, começamos a mergulhar no oceano profundo da loucura. Em cada pincelada, as cores, intensas, desesperadas, nos encaram do alto das molduras pregadas nas paredes e nos mostram aquilo que somos: iguais, em nossas emoções e medos. Pequenos e frágeis, diante do outro, dotados de uma magia estranha, poderosa, quando mergulhamos em nosso interior ...Crueis, quando tentamos normatizar o que o outro pode ou não pode ser....Diante de meus olhos vejo duas esculturas, lado a lado: a primeira, de traços harmoniosos, branca, com curvas sinuosas e precisas. A segunda, uma massa disforme, resultado da lobotomia no autor de ambas as obras. A diferença entre as duas obras ressoa como um tapa na cara, uma interrupção abrupta do fluxo de arte que provavelmente escorria pelas mãos do escultor, impedido permanentemente de criar. Uma bela contribuição da sociedade em prol da ordem e do progresso.#soqn Ao avançarmos no jardim, inspirada pelas palavras do guia, imagino o amontoado de corpos, antes da Dra. Nise da Silveira colocar seus pés ali. Um pouco antes dela, o espaço já fora uma horta para mulheres condenadas, confirmando o histórico do lugar para aprisionar corpos. Mas esses mesmos corpos, encarcerados, não conseguiam ficar presos de todo. Era ali, na sala de terapia ocupacional que os internos libertavam-se, ganhavam asas, fugiam das limitações cotidianas, mergulhavam dentro deles mesmos...O resultado está ali, nas milhares de telas e esculturas armazenadas no museu...Em cores que grudam em nossas retinas, em figuras de sonhos, imagens de sensações, mandalas diversas.... Tudo pulsa...Como se acompanhando o pulsar das obras, ouve-se o som de um batuque, no fundo do quintal...Seguimos até lá e, chegando no Instituto Travessias, somos invadidos por uma profusão de cores, som e movimento...Entramos no momento da apresentação de um grupo de carimbó e a sala se enche de chitas, cetim vermelho e chapéus de palha. A ordem é clara: todos ao centro da roda. É proibido ficar parado. Uma saia florida, como de costume, me encontra e, sou convidada a dançar. ...Quem seriam os loucos, os profissionais de saúde, os visitantes? Estamos todos misturados, balançando nossos corpos e girando sem parar ao som do carimbó. Ali, no meio das saias e mãos que giram, reside o coração da loucura, algo impossível de diagnosticar ou mesmo de localizar em uma pessoa qualquer.Sacwrese somos loucos, somos todos e juntos.

segunda-feira, 20 de março de 2017

Sobre narrativas e memórias

O que vocês pensam, quando imaginam uma aula de doutorado? Muita teoria, digamos assim, professor em sua mesa, textos científicos, silêncio? Pois é, eu também pensava isso. Até hoje. Chego atrasada ao 11ᵒ andar da UERJ, subindo os milhares de quilômetros (pelo menos para mim) de rampas que me separavam da sala de aula, procuro o local correto, erro a porta, volto ao corredor, me desespero porque estou 35 minutos atrasada em uma aula com um professor desconhecido, em um programa que não é o meu. Percorro os longos corredores do andar, tento uma porta e me deparo com uma sala de aula cheia. Paro na porta. No meio da sala organizada em roda, uma menina, um livro cheio de ilustrações na mão, contava uma história para os demais alunos. Devo ter feito uma cara de espanto tão grande que provocou olhares, o que me fez perguntar: aqui é a aula do professor fulano? Era. Me recolhi ao fundo da sala e esperei-a terminar a narrativa, que falava da importância das memórias...Já começava a pensar em como ia sair da sala, pensando tratar-se de um engano, quando o professor tomou a palavra, se apresentou e pediu que nos apresentássemos. Antes, pediu que fossemos até a mesa que - agora eu notava- estava cheia de objetos, brinquedos inclusive... Em silêncio, cada um pegou uma coisa e voltou para seu lugar. Um por um, fomos falando dos objetos que estavam em nossas mãos, relatando um fato curioso, uma lembrança que nos veio à cabeça através dele...Aos poucos, fomos ouvindo as histórias de cada um, tornando-as nossas, conhecendo um fragmento da vida de todos os alunos...Finalizada a dinâmica, o professor retomou a palavra e começou a falar de memória, do tempo da vida, do intervalo entre a percepção e as ações, onde cabem todas as coisas, entrelaçadas por memórias. E eu, que vinha de uma certa implicância com o universo do autor que seria estudado, me rendi aos encantos do tempo, justamente (vejam só a ironia), quando, dizem, inicia-se a era de Saturno, Deus do Tempo. Mas, ao contrário do que se pensa, Saturno não é somente o tempo cronológico, mas o tempo da percepção e dos afetos. Em nossa vivência no mundo, a cada passo, somos afetados por pessoas e coisas, criando laços de tempo e movimento que se tornam, inadvertidamente, memória. Contar uma história é resgatar, entre sentimentos e imagens, fragmentos de tempo e experiências, que juntamos às linguagens mais diversas, tornando-as comuns. O que torna a narrativa mais bela não é somente a escolha sistemática de palavras para compor nossas frases, mas o quanto nos esforçamos para fazer dessas histórias um lugar compartilhado, de modo que cada um que ouça possa colocar um tanto de si ali, se apropriando também de um tantinho de nós. Para isso, mais importante do que saber falar, é esforçar-se para ouvir. Na troca afetiva que se dá, a comunicação, como espaço entre, constroi pontes entre os sujeitos, tornando-os parte de um tempo em comum. E nos tornamos eternos porque, ao compartilharmos um tanto de nós, marcamos e deixamo-nos marcar pelas memorias que chegam até nós...Se cada história se tornará um livro, um filme ou um post, isso ficará a cargo de cada um...O importante, talvez a lição mais relevante de toda a experiencia, é não apressar o intervalo de percepção, em benefício de uma resposta rápida. Somos maiores, na medida em que nos permitimos ouvir as engrenagens de nossas sensações e memórias e emaranhá-la, em um tempo que não é possível controlar, em uma trama irremediavelmente afetiva, com todo aquele que cruzar nosso caminho...

quarta-feira, 8 de março de 2017

8M

Da marcha que começa nos murmúrios, nos rostos pintados, nas mães,amigas,irmãs,colegas de trabalho,que caminham pela rua...No meio da praça as policiais,todas mulheres, garantem o desvio do tráfego...Nas escadas, nos bares,nos museus, aparecem aqui e ali as bandeiras, as bandanas,os cartazes começam a se juntar,indo da calçada pra rua...Engana-se quem pensa que é uma marcha só de mulheres, no sentido restrito da coisa...São muitas,lindas em sua diversidade, vestidas de vermelho e verde,de mãos dadas com companheiros e companheiras, crianças,meninas,idosas, LGBTQ e tantas outras cores que se perdem na multidão..Alguém me oferece um adesivo,enquanto um senhor,vestido de enfermeiro, carrega uma maca com uma placa onde se lê:"fim ao feminicidio"..As rodas de danças,os tambores reunidos, das senhoras sentadas na praça às meninas que fazem jogral em meio ao povo que toma cerveja, a ordem é ocupar a cidade..O evento,enquanto estratégia política é de todos e para todos,fazendo do feminino,um exercicio de ser plural..





sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Trapézios

Que os monstros dos mares do agora, não turvem nossa visão e a cegueira do momento não limite nosso olhar para dentro de tudo. De tudo que mereça nosso movimento nos encaixes de se saber encontro sempre.Encontro nos momentos de escuta, encontro nos momentos de fala.Encontro de se reconhecer eixo de pés fincados nas areias de seu espaço.Onde latitude e longitude se reinventam para abençoar o nascer da estrela.Estrela feita de vida, construída no suor dos corpos que buscam a liberdade, que respira sonho e vive na fé do que não se pode saber.Saber não é nada frente a expansão do sentir .Sentir outro, sentir ontem, sentir presente na grandiosidade frágil da imaginação.Sou o que imagino e imagino galáxias no infinito da musica que não para de preencher o meio.Meio feito de nós, meio feito de historias e falas que me conduzem ao lugar do intuir vida .Vida que pulsa nas esquinas que não posso ignorar.Não há potencia na utilidade sem verdade.Não há horizonte no caminho que se apequena no medo de não ser.Seja, seja e se reinvente no trilho do eu dentro de si.Nas entrelinhas das engrenagens enferrujadas, descrentes de se poder transmutar a vida em seu estado poético, o espaço se confunde com o tempo do respirar útil.Estagnada num espiral de expansão com o mundo mas sem sintonia com a respiração de seu ritmo.Ritmo de saias rodadas e sorrisos largos, ritmo de silêncios no compasso da escuta do mundo e das imagens do nós.Dentro de si cabe o mundo, com seus conflitos , dores, alegrias, vozes,cores...Mas e no mundo,cabe a si?Transborda o eu na entrega da vida farta.Vida feita de água, na condição sutil de ser fluida, nas correntezas do sentimento expandido pala alem de si e dentro de tudo. Impregna de sentido o nascer de outro lugar.Lugar de dialogo com o tempo, que se reinventa na estrutura do que nunca se foi, mas sempre se é.e será para sempre. O eu que habita em mim por Debora Restum Porque no fundo era fácil, o tempo todo... Era quase como subir um trapézio, degrau a degrau, sem pensar, que lá embaixo, o público esperava um movimento arriscado. No fundo, tu sabias que não havia caminho distinto do que subir a escada, pé ante pé, esquecendo o burburinho das pessoas, que, aos cochichos, pediam que não subisse, que não subisse mais, que ficasse aqui só mais um pouco, onde era confortável e calmo. Mas era ali, no desconhecido intervalo entre um degrau e outro que o pulsar da vida, entre sangue e suor, existia. E nunca antes houve dúvida. O caminho era esse. Nas tardes de leitura, no virar das páginas, nas frases que te machucavam desde sempre, na emoção de ouvir a palavra que entrava pelos ouvidos e ia alcançar a ponta das tuas mãos... Enquanto vai te tornando mais e mais surda ao que te sussurram, agarras com força a corda da escada, que balança perigosamente, no vento...e sobe ainda mais alto, até os rostos familiares se tornarem um borrão difuso e só sobrar no peito a voz de tua mãe, no chão da sala, te contando da vida dos homens e o som da voz do teu pai, no fim do dia, na beira da tua cama, e apresentando as histórias dos livros. Nunca houve outro caminho, nem poderia haver. Enquanto buscavas terras distantes, de amores e saberes, aqui dentro, teu mundo restava, enorme. O tempo todo a escada, no centro do picadeiro, estava ali, para que subisses. E tu atrasastes a hora, rondando o lugar, fazendo de conta que não era contigo... Enquanto fechavas tuas próprias histórias em um baú dentro do peito, percorrias com os olhos as palavras de outros, se perdia e se encontrava. E aí foram os anos. Muitos de não contar... Enquanto isso, a vida. O doar-se para o outro, o aprendizado doloroso do sofrimento. E hoje, quando tudo te diz não, passados quase 4 décadas de vida, percebe que nunca houve outro caminho... Em silêncio pede licença. Se afasta de todos...fica só. Percorre o lento caminho até o centro do palco. Mãos firmes, sobe o primeiro passo, esperando cair. Os pés e equilibram. A cada momento, tens vontade de voltar. Mas sabes que não há caminho de volta. Alguém te chama. Não voltas o rosto. Persegue algo que não consegues ver. Sente. As vozes ficam mais baixas, viram um confuso burburinho. Pouco a pouco, o sentido da subida, o próximo degrau, torna-se difuso. Só sabes que precisa ir. Ainda e sempre. E então, num intervalo de silêncio, alcanças o topo. Uma pequena plataforma de madeira, no canto esquerdo do picadeiro. Só há espaço para os teus pés. Contemplas lá de cima teu universo, o percurso de cada dia... Alguém grita seu nome, pede que tenha cuidado. Afinal. Não há rede de proteção. tu apenas sorri. e mergulha. Por Tatiane Mendes

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Palavras..

Há um silêncio que só se ouve quando se está só e as palavras escondidas nas páginas de um livro vem dançar na tua cabeça. Enquanto tentas ter controle da leitura e pousar superficialmente em cada frase, elas vão pouco a pouco se inserindo em teu pensamento, captando tua atenção. Mesmo que busques mecanismos de desvio, observando a paisagem ou voltando os olhos em outra direção, elas permanecem ali, em estado de vigília, propondo combinações em versos e prosa. E então, enquanto estás distraído, elas entram, sorrateiramente, pela tua orelha, penetrando tua mente, acomodando-se em tuas memórias, revirando-as sem dó...E é ali, quando menos se espera que elas te prendem, corpo e alma, oferecendo frases e demandando tua atenção. Sem se dar conta, de repente, o silêncio se faz e as palavras, que estavam impressas em tuas mãos, mergulham em ti... Pronto. Já não te pertences mais. Estás preso, ao ritmo imprevisível dos versos, na desarmonia das estrofes, aguardando a próxima linha. Enquanto viras a página, não respiras mais. És todo expectativa e tensão. E então, ali, logo no alto da página, a primeira palavra estende as mãos... E o sentido, como mágica, se faz. Em vão baterão à porta, não atenderás ao telefone... O tempo, nesse momento, acabou de paralisar. Seus olhos, grudados no papel, percorrem as letras, em ritmo frenético... E do silêncio retumbante que se faz, o único ruído divergente é o leve som das páginas, que moves impaciente... É preciso que esse livro acabe – pensas- é preciso logo, pois enquanto ele durar, não és mais dono de ti... O que te move, que te faz respirar, é a poesia indefinível que repousa entre os versos, que te carrega como um vento forte, fazendo com que esqueças de tudo mais. E assim, página a página, frase a frase, intercalas impaciência e plenitude.. Tu só existes no intervalo entre capítulos. E então, na última página, quando ergues os olhos do livro, percebes que o sol se pôs, que as cortinas da janela voaram e as folhas se espalharam no quintal... O quarto está escuro, nada se move. Mas ali, dentro do teu peito as palavras ainda pulsam...e o silêncio, enorme, te preenche e aquece. És outro. Infinitamente maior... Nas tuas mãos, o livro fechado adormece, até o próximo leitor.

domingo, 20 de novembro de 2016

Quando o caos não gera estrelas brilhantes

A menina na escola termina seu último desenho. Ela se sente feliz, pois acabou a tarefa pedida pela professora. O pedido era para que todas as crianças, uniformemente distribuídas pela sala, desenhassem o que fizeram nas férias. A menina caprichou nas cores, gastou todos os seus azuis na página branca que ficou pesada de tantas histórias... O rosto suado pelo esforço de imprimir todas as cores do arco Iris em giz de cera grosso, as mãos multicoloridas, ela sorria um sorriso de covinhas, as bochechas ainda com restos de cores,o cabelo amassado, retorcido atrás das orelhas..A um sinal da professora, todos os alunos levaram suas composições à mesa grande...Era preciso escolher a melhor..Percorrendo com os olhos cada folha,a menina conseguiu identificar torres, igrejas, praias,todas representadas com riqueza de detalhes.. A professora, séria, ia passando de um em um, analisando as linhas, a perspectiva, um ou outro elemento. Súbito,olhou para ela.. Onde estava o seu, a professora perguntou. Atrás das costas,meio amassada nas mãos, a menina estendeu a folha pesada e colocou-a na mesa,junto aos demais..A professora analisou, franziu a sobrancelha, perguntou o que era.. A menina explicou... A professora pediu detalhes. A menina não tinha. O que tinha era uma profusão de azuis, que tomava toda a superfície do papel em nuances sem nenhuma forma ou detalhe.. Então era isso que tinha feito nas férias?Apenas uma grande mancha azul?Os colegas riram. A professora balançou a cabeça. Desse jeito seria reprovada em composição... Voltou ao seu lugar. Engoliu a recomendação de que deveria estudar a técnica, ou melhor, as técnicas, pois assim como estava jamais poderia concluir o curso... A menina abalou a cabeça e olhou o desenho onde, ao contrário dos demais, ela conseguia ver cada momento das férias... Dobrou a folha, guardou na mochila, foi cuidar da técnica. Aprendeu perspectiva, composição, todos os elementos da sintaxe visual. Foi considerada apta. Saiu da escola e foi cuidar da vida... Aprendeu Matemática, História, Português.Formou-se. Arranjou um emprego. Alugou um apartamento. Paga seus impostos. Vez por outra é vista comprando papel e tinta, quase sempre azuis, para usos inexplicáveis.. E o desenho,das férias,continua guardado no canto mais fundo do armário. O menino escondeu-se atrás dos amigos. Numa longa fila cada um deveria executar um movimento, sob a avaliação da banca. Eram muitos os pés, apertados nas sapatilhas, sobre o linóleo frio. Ao final da sala os três professores aguardavam... A cada passo que dava o menino sentia mais enjoo e vontade de sair correndo. Ballet era isso? Era por isso que aguentava cotidianamente a gozação dos irmãos e a indiferença do pai?Repuxou nervosamente a malha, ajeitou a sapatilha e alongou os braços. À sua frente os amigos pareciam calmos, enquanto ele queimava...Aquelas longas horas de exame não se pareciam nada com a sensação que teve ao ver pela primeira vez o solo do famoso bailarino, que o inspirou a entrar nas aulas de dança. Soberbo, absoluto, leve, o artista parecia voar,seus pés mal tocando o chão do palco.. Muito diferente daquilo que o menino sentia,como se suas sapatilhas estivessem pregadas no chão... Até que, de passo em passo, chegou sua vez. Pensou morrer, quando ouviu seu nome ser chamado... Caminhou pela sala sem ter certeza de que ainda tinha pernas. Posicionou-se na barra.. E esperou..Não conseguiu ouvir nenhuma das ordens da professora. Apenas lembrava brevemente da ordem dos movimentos, mas não tinha certeza alguma se estava executando-os ou apenas sacudindo braços e pernas, sem direção alguma... A tortura durou meia hora...Assim que foi dispensado, o menino levantou-se, pegou a mochila,disparou pelo corredor e não parou mais de correr,até chegar em casa.Lá escondeu as sapatilhas no canto mais fundo do armário e nunca mais mexeu...Os anos passaram e o menino cresceu.Viajou bastante.Conheceu muitos lugares diferentes...Jantou em restaurantes exóticos.Dirigiu carros incríveis.. Vez por outra assiste a um ballet, da frisa mais cara, de onde sai encantado, olhos vermelhos, mãos retorcidas de dor.. As sapatilhas,contudo,continuam guardadas no armário. A menina repousou o rosto nas mãos. Era quase meia-noite e a festa continuava animada. Um a um ela via cada um dos seus amigos partirem para a pista de dança, mas ela continuava ali, sozinha..O medo era tão grande, que não conseguia arriscar um passo..Afinal de contas,não fora ela mesmo que dissera que a dança não era importante,quando saíra da última aula?Não conseguiria mesmo aprender as técnicas, o corpo não dava conta de tantas regras e ela se sentia inadequada e incapaz. Fora sempre essa a sensação que a expulsara de todas as aulas de dança que fizera. Ao final da última se convencera de que a dança, definitivamente não era pra ela...Tinha sido esse o diagnóstico da professora, reforçado pelos parentes e amigos,certos de que ela seria ótima em qualquer outra área. Mas era ali,no ritmo da música,no meio do salão, onde o coração pulsava e cada célula do seu corpo pedia pelo movimento,qualquer que fosse ele... Ao canto ela podia ouvir os risos das amigas, condenando qualquer coisa diferente de seus narizes... Ensaiou balançar os pés, mas derrubou uma das cadeiras próximas, chamando atenção para si.. Ouviu risos da mesa ao lado e o ar condescendente do garçom,que lhe oferecera um copo de guaraná...respirou fundo e tomou uma decisão. Levantou da cadeira. Caminhou meio a medo,para o centro do salão e ali fechou os olhos,sentindo o ritmo da música tomar seu corpo.. Começou a balançar-se lentamente,quando ouviu risadas..As moças da mesa ao lado,não havia dúvida, a olhavam e riam...Gelou o peito...Respirou fundo. Baixou os olhos.Tremia...Olhou as mulheres muito profundamente...Virou a cabeça. E saiu do salão...Foi para casa.As mulheres e os salões de dança nunca mais a viram, mas os vizinhos,aos domingos, costumam ouvir um arrastar de móveis e um som de música,abafado,sair de seu apartamento.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Recortes

Do vinco das roupas que acabaram de ser passadas. As mãos que ajeitam, nervosamente, a camisa, de frente para o espelho. O perfume de sabonete, misturado aos odores de limpeza, do chão que acabou de ser polido. O som do salto dos sapatos, que percorrem apressadamente o corredor. A maquiagem rescendendo no rosto, enquanto as mãos, trêmulas, ajeitam o penteado no reflexo do celular. E a alma nova, que transparece ao redor, o sorriso nervoso, ensaiado ontem no espelho, depois de uma semana de correria e espera. É hoje,as 10h,na abertura dos portões,que começa um novo ciclo,de contatos, frases,pessoas e a esperança,essa sim que não cabe dentro do peito, porque é natal,oras,época de renovar os caminhos,de molhar os pés no mar e agradecer o rumo diverso,sobre o singelo nome de “novas oportunidades para o período natalino”. Já de longe os recém-contratados são fáceis de identificar, basta olhar. Estão sorrindo, transbordam boa vontade, anseiam por serem úteis. Aos poucos, a loucura do consumo e o velho hábito da impaciência humana acabarão, infelizmente, por levar-lhes o restante de energia que tiverem. Mas,ah!,enquanto têm esperança e anseiam por um novo dia, como é maravilhoso ver-lhes, já no início do dia, as baterias recarregadas, procurando com os olhos os primeiros clientes. Daqui,do café onde escrevo,da confortável posição de espectadora que me coube,eu queria ter a mesma sensação de recomeço que consigo perceber em seus olhos. Que importa que o sistema os vá oprimir?Que o transporte vá lotar?Que o salário não vai ser suficiente?Nesse breve momento que congelo em minha retina, eles tudo podem, porque esperam.