Andando pela cidade a gente pratica a cartografia das escutas, vai mapeando pelas ruas as falas e gestos do povo e assim entendendo um pouco de um espaço compartilhado, de sentir e de conviver...No colorido das roupas, no comércio popular é onde as trocas acontecem e é muito interessante perceber a mudança dos rostos, o ar de festa, a fila para vender ( e comprar) o body amarelo, as camisas numeradas esticadas no meio do passeio, os ambulantes contando piadas do jogo anterior... Nessa fluxo incessante de gente e falas, de imagens e sons é impossível determinar onde começa e onde termina o espaço de cada um. De que cidade falamos? Do traçado de cada ponta do VLT? Dos novos canteiros da prefeitura? Dos músicos de rua atravessando a Rio Branco com seu violino? Do artesão de arame ou do vendedor de livros, dos corredores de camelôs, dos territórios de cada morador de rua, das nuvens de executivos, advogados, idosos, nas vitrines das farmácias, nas mesas dos cafés. Quem pode determinar o que faz ou não faz parte da cidade? De certo não é o prefeito, ou a prefeitura, que notadamente não ouvem os fluxos diversos e não são capazes de perceber a quantidade de cidades diferentes que se cruzam, se desafiam, rompendo e reinventando fronteiras. Todos os dias. Quem ousaria determinar o quarteirão do Teatro ou da Biblioteca como o único caminho possível? Quem poderia dizer quais os melhores ângulos ou os enquadramentos possiveis? quais narrativas deveriam sobreviver ou serem dizimadas? Não seria alguém que não compreendesse essa cidade como plural, como palco de negociações e conflitos, ressignificações e encontros. Sem pisar na rua, sem ouvir a cidade, o único caminho possível é a intolerância.
Estive recentemente em uma aula de História do Rio de Janeiro no MAR. De todas as falas, a que mais me tocou foi quando em, um dado momento, o professor explicava da formação do território, das muitas cidades presentes em um mesmo espaço, atravessado por diversas culturas e marcadamente negra e indígena. Aqui e ali terreiros, giras, ladeiras, quintais, praças, rodas, falas, gestos, desafios, conflitos, formando uma colcha de retalhos que hoje convencionamos chamar de Rio. No projeto da cidade que até hoje ilustra os cartões postais e projetos turísticos, não sobrevive o extracampo, as falas silenciadas, as histórias de vida, os rituais, as rezas, as comidas, as mãos e braços, as cores diversas. Temos um espaço riscado a lápis, saindo das plantas para os imaginários que fomenta nossa ideia de lugar...mas se olharmos bem, aqui e ali, em cada imagem vista ouvem-se murmúrios, gritos, lamentos, um rastro de sangue e suor, sobrando das calçadas, descolando os paralelepípedos, percorrendo os postes, subindo a ladeira dos morros e tomando para si o espaço roubado...ainda somos a mesma cidade negra e indígena, das rodas e rezas, atravessando o cotidiano e sobrevivendo em meio ao caos.
quinta-feira, 28 de junho de 2018
domingo, 8 de abril de 2018
Tenho voltado continuamente, nesses dias tensos, a 1989, ano das primeiras eleições democráticas pós-ditadura....Talvez porque tenha crescido ouvindo as histórias apavorantes de um momento particular onde músicas, peças, livros e filmes eram censurados, em que estudantes era carregados por homens armados para porões de quarteis e torturas inimagináveis eram cometidas contra quem pensava diferente, a ditadura sempre me pareceu muito real, como são nossas memórias, quando temos seis anos de idade...O lado ruim dessa experiencia é que adquiri um medo enorme de qualquer forma de repressão e as prisões passaram a ser o lugar do meu pânico(poucos anos depois, eu conheceria a história de Mandela e passaria anos rezando por sua liberdade. Sim, sou dessas. Eu rezo por desconhecidos). Como era possível restringir a liberdade de alguém, que apenas exercia seu direito a viver de uma forma diferente ?Como era possível que existissem homens e mulheres que invadissem teatros, com armas e interrompessem a golpes de cassetete, peças teatrais? Lembro de ouvir meus pais contarem que, na faculdade, era costume cantar músicas a meia voz, para não serem ouvidos e denunciados como subversivos. Que poder terrível seria esse o de impedir uma canção ou um pensamento? Que ser tão maquiavélico poderia reprimir vozes que cantavam? Sim, eu tinha seis anos. Talvez por isso,1989 tenha sido gravado tão forte em minha memória. Lembro das ruas de Santa Teresa, tomadas de bandeiras, das estrelas vermelhas e lembro das canções...Para qualquer um que não possa compreender a política como parte fundamental do humano, pode parecer bobagem. Mas para mim, a reunião de pessoas com o objetivo de mudar o mundo, sempre foi irresistível. Parecia impossível não as ouvir em suas demandas, por educação de qualidade, saúde pública, justiça social e fortalecimento da economia. Não, eu não conhecia nenhuma dessas palavras. Não dessa forma. Mas eu sabia, desde aquele tempo, da extrema injustiça de se acreditar que alguns tem direito a viver e outros não. E que, para que todos conseguissem viver suas vidas, com trabalho, moradia, saúde e educação, todos tínhamos que trabalhar, muito. Sim, naquela época eu já ouvia e me encantava com os caras do Clube da Esquina dizendo que “um mais um é sempre mais que dois”...Não consigo explicar a vocês o que foi a derrota de 1989,para mim, nos meus onze anos...E do sabor amargo dos anos posteriores, em que Lula, o mesmo Lula proletário, sindicalista, nordestino, despenteado, em mangas de camisa, disputou as eleições...Digo ainda hoje que, para entender o governo Lula é preciso ter conhecido as universidades e escolas públicas federais(para citar apenas um exemplo) nos anos 1990. As salas de aula abandonadas. As paredes caindo aos pedaços. As greves constantes. Os laboratórios pré-históricos. Curiosamente, em poucas salas do CEFET, onde eu estudava, o ar-condicionado e os móveis eram novíssimos e abrigavam poucos funcionários, confortavelmente instalados...E então, tivemos 0 2003, o fabuloso ano em que “o povo chegou ao poder”.Eu já havia estudado isso em história, mas nada me prepara para ver aquele cara barbudo ser tomado por mãos populares, a caminho da posse. E parecia impossível que houvesse uma força maior do que essa, de romper o preconceito, o conservadorismo, os narizes torcidos e se tornar presidente. Mas houve. E a imprensa, atuando como partido político, iniciou o projeto do Mensalão, atirando contra o grande telhado de vidro que o Partido dos Trabalhadores criara, ao se associar à estrutura burocrática dos partidos brasileiros e incluir entre seus quadros velhos coronéis como José Sarney, tudo em nome da governabilidade...Somos afinal, uma federação e não se governa 200 milhões de pessoas sem uma gigante máquina administrativa, que conservava em seu interior uma estrutura monstruosa de corrupção intrinsecamente associada ao Estado e em acordos, muitos espúrios. De súbito, o sindicalista de 1989 se tornou o maior articulador do país, maior ainda do que era nas greves do ABC, quando dominava milhares de operários em seus discursos. A conta viria, eu tinha certeza, na insistência em governar com velhas estruturas de poder. Mas o fato, para o bem e para o mal, é que éramos 200 milhões de pessoas, pagando impostos(conversem com os economistas sobre todas as taxas que incidem sobre qualquer operação financeira cotidiana e saberão que TODOS, sem exceção, contribuem com a arrecadação) e assistindo, entre negociatas, nossas escolas, hospitais, indústrias sucateadas e a dívida pública(sim, havia na década de 80/90 uma entidade apavorante chamada dívida externa e outra ainda maior chamada FMI, que ameaçava cada um de nós e fazia com que engolíssemos o congelamento dos salários, a ausência de investimento em ciência e tecnologia, a fome e a morte de uma grande parcela da população) sufocar qualquer perspectiva de crescimento. Éramos afinal, um pais subdesenvolvido. Não sei bem quando as palavras dívida externa e FMI começaram a ser substituídas por indústria naval, construção de universidades e centros técnicos, programa de erradicação da fome e de habitação nas primeiras páginas dos jornais. O país cresceu. Continuávamos com demandas e nos apoiávamos em estruturas sociais arcaicas. Mas ainda tínhamos Lula e, mesmo fora do governo, a figura política deste senhor continuou mobilizando olhares, carregando o peso de ser - em um país onde os secretários de governo acreditam que favela e asfalto, sul e norte, negros e brancos são planetas diferentes- o presidente que uniu, por algum tempo, empresários e movimentos sociais em uma só pauta :o desenvolvimento social do país.Hoje,Lula é preso,por um judiciário que certamente nasceu em uma época onde as universidades públicas se tornavam uma realidade não apenas no Eixo Rio São Paulo, mas nos estados do norte e nordeste, onde os cientistas sociais podem refletir sobre a conjuntura política, os filósofos e historiadores podem pensar cenários e contextos e os economistas podem conjecturar soluções. São todos herdeiros de uma visão desse mesmo homem,que hoje é escoltado pela mesma polícia federal que ajudou a aparelhar, que acreditou que Filosofia e Sociologia deveriam ser disciplinas ensinadas aos alunos do ensino médio e que ciência, laboratórios equipados, cursos de pós-graduação e bolsas de estudo era uma maneira tão importante de desenvolver um país quanto um prato de comida para quem tivesse fome. Lula certamente passou fome. Mas certamente não estudou Sociologia na escola.Seu aprendizado vem das ruas, do longo percurso político como sindicalista(profissão que, para alguns, é curso de vagabundagem e terrorismo),das caravanas pelo país,em 2002 e 2017,conhecendo as necessidades de um povo,que também tinham sido as suas. Trabalho.Segurança. Habitação.Vinha sobretudo,da consciência(esotérica para alguns,que acreditam não viver em sociedade,mas em ilhas de segurança.Conheço muitos,em níveis diferentes de esquizofrenia ) de que vivemos em um coletivo e que nossa responsabilidade política vai muito além do voto..Implica a compreensão de que compartilhamos um mesmo espaço público e que todos,sem exceção, temos direito a saúde, educação,emprego,transporte.Sei que esse discurso parece comunista e é,no que o comunismo,em teoria tem de mais exato:um governo de homens que pensam e agem coletivamente.Sei que em muitos cenários, o ideário comunista foi suplantado,esquecido, pervertido em sistemas autoritários de poder. Mas, uma vez que vivemos coletivamente, não seria através de uma solução para poucos, que governaríamos muitos. E nesse exato momento, em que escrevo nesse texto a palavra “coletivamente”, me vem à memória a imagem de Lula, carregado pela multidão, protegido por milhares de corpos, envolto em uma imensidão de afeto. O mesmo Lula que fora,38 anos, carregado pela multidão, nas greves do ABC e tivera seu rosto tomado por mãos de trabalhadores, em suas andanças pelo país. Não espero que a classe média, aquela mesma que vê diferença entre favela e asfalto, nordeste e sudeste, negros e brancos,compreenda a imensidão dessa cena,deste senhor de 72 anos,envolvido pela multidão.Nem eu mesma ouso compreender.Por muitos anos, critiquei Lula,pelos acordos, pela insistência em negociar com todos,pela teimosia em apostar no consumo, pelo pragmatismo em aceitar modelos como o de Segurança, como o único possível.Hoje,esse mesmo homem,20 anos mais velho,é encaminhado para a prisão, por um crime cuja prova não existe(não me venham falar de fotos,áudios, testemunhas.Bem sabemos que ,à letra fria da lei,a assinatura é o que comprova a propriedade)envolvido por todos aqueles que habitaram desde sempre seus pensamentos.Professores,médicos, sindicalistas, políticos,engenheiros, técnicos, repórteres, policiais federais, juízes, advogados, muitos formados pelas instituições que ele ajudou a construir. Funcionários de empresas públicas fortalecidas pelo projeto econômico que ele sonhou.Do lado de lá, em outros países, cidadãos brasileiros, emigrados por programas, incentivos,oportunidades de viver no exterior(em países com um forte Estado de bem estar social,diga-se de passagem), muitos críticos dos programas sociais brasileiros, assistem e comemoram sua prisão. Falam de igualdade, de justiça para todos, clamam pela limpeza do Estado brasileiro e a retomada do crescimento, comemorando a prisão do único presidente que realmente compreendeu e executou a ideia de igualdade e crescimento e o fez, em mangas de camisa, entre metáforas de futebol e piadas,que, nunca antes na historia desse país,estiveram presentes em discursos oficiais... Se a justiça,essa mesma justiça que é pedida,entre palavras de ódio fosse uma realidade, haveria a partir de amanhã um outro governo, um outro Estado e as linhas da constituição que descrevem os direitos e garantias fundamentais seriam cumpridas(Agora mesmo acabo de ler mais uma matéria sobre arquivamento do processo contra um certo senador mineiro..).Amanhã, processos continuarão a serem arquivados, armas continuarão a serem distribuídas pelas ruas como mecanismo de “segurança”, escolas,hospitais e universidades públicas continuarão a agonizar. Por isso, não me venham falar de Justiça, quando não compreendem o significado desta palavra. Ela não passa definitivamente pelo ódio ou pela ideia de que nossos privilégios devem ser mantidos para poucos. Ela passa por distribuição de renda, pelo equiparidade salarial, por acesso à educação e saúde, a formação continuada, por incentivo a ciência e tecnologia. Por uma imprensa livre. Por pensamento crítico, fomentado pelas famigeradas ciências humanas nos bancos escolares, nos bares, nas esquinas, nas ruas. E é de posse dessa liberdade de ser, de se entender como parte de um coletivo e da responsabilidade de ser parte de uma sociedade, que posso afirmar que Lula não está preso. Está por aí. Fomentando imaginários, a cada vez que sua imagem em meio à multidão é compartilhada, visualizada, debatida. Resta-nos prosseguir. Há dois lados possíveis: o daqueles que se compreendem como parte de uma coletividade, igualmente inseridos em processos políticos que atravessam e compõem seu cotidiano. Sejam eles bem ou mal informados sobre política(que nada ou quase nada tem a ver apenas com partidos políticos), sobre termos complexos e estatísticas. Sabem-se parte de um grupo social, seja a rua, a vila, o bairro e compreender que o respeito é o único caminho possível para sobreviver. E há aqueles que acreditam que a política não faz parte de suas vidas. A esses, a ignorância, o medo e o ódio costumam visitar, em intervalos regulares. Clamam por justiça, mas estabelecem pesos diferentes entre mortes e vidas. A esses ofereço apenas, nesse tão longo texto, meu mais profundo silêncio...
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