quinta-feira, 28 de junho de 2018

Murmúrios da cidade

Andando pela cidade a gente pratica a cartografia das escutas, vai mapeando pelas ruas as falas e gestos do povo e assim entendendo um pouco de um espaço compartilhado, de sentir e de conviver...No colorido das roupas, no comércio popular é onde as trocas acontecem e é muito interessante perceber a mudança dos rostos, o ar de festa, a fila para vender ( e comprar) o body amarelo, as camisas numeradas esticadas no meio do passeio, os ambulantes contando piadas do jogo anterior... Nessa fluxo incessante de gente e falas, de imagens e sons é impossível determinar onde começa e onde termina o espaço de cada um. De que cidade falamos? Do traçado de cada ponta do VLT? Dos novos canteiros da prefeitura? Dos músicos de rua atravessando a Rio Branco com seu violino? Do artesão de arame ou do vendedor de livros, dos corredores de camelôs, dos territórios de cada morador de rua, das nuvens de executivos, advogados, idosos, nas vitrines das farmácias, nas mesas dos cafés. Quem pode determinar o que faz ou não faz parte da cidade? De certo não é o prefeito, ou a prefeitura, que notadamente não ouvem os fluxos diversos e não são capazes de perceber a quantidade de cidades diferentes que se cruzam, se desafiam, rompendo e reinventando fronteiras. Todos os dias. Quem ousaria determinar o quarteirão do Teatro ou da Biblioteca como o único caminho possível? Quem poderia dizer quais os melhores ângulos ou os enquadramentos possiveis? quais narrativas deveriam sobreviver ou serem dizimadas? Não seria alguém que não compreendesse essa cidade como plural, como palco de negociações e conflitos, ressignificações e encontros. Sem pisar na rua, sem ouvir a cidade, o único caminho possível é a intolerância.







Estive recentemente em uma aula de História do Rio de Janeiro no MAR. De todas as falas, a que mais me tocou foi quando em, um dado momento, o professor explicava da formação do território, das muitas cidades presentes em um mesmo espaço, atravessado por diversas culturas e marcadamente negra e indígena. Aqui e ali terreiros, giras, ladeiras, quintais, praças, rodas, falas, gestos, desafios, conflitos, formando uma colcha de retalhos que hoje convencionamos chamar de Rio. No projeto da cidade que até hoje ilustra os cartões postais e projetos turísticos, não sobrevive o extracampo, as falas silenciadas, as histórias de vida, os rituais, as rezas, as comidas, as mãos e braços, as cores diversas. Temos um espaço riscado a lápis, saindo das plantas para os imaginários que fomenta nossa ideia de lugar...mas se olharmos bem, aqui e ali, em cada imagem vista ouvem-se murmúrios, gritos, lamentos, um rastro de sangue e suor, sobrando das calçadas, descolando os paralelepípedos, percorrendo os postes, subindo a ladeira dos morros e tomando para si o espaço roubado...ainda somos a mesma cidade negra e indígena, das rodas e rezas, atravessando o cotidiano e sobrevivendo em meio ao caos.