domingo, 20 de novembro de 2016

Quando o caos não gera estrelas brilhantes

A menina na escola termina seu último desenho. Ela se sente feliz, pois acabou a tarefa pedida pela professora. O pedido era para que todas as crianças, uniformemente distribuídas pela sala, desenhassem o que fizeram nas férias. A menina caprichou nas cores, gastou todos os seus azuis na página branca que ficou pesada de tantas histórias... O rosto suado pelo esforço de imprimir todas as cores do arco Iris em giz de cera grosso, as mãos multicoloridas, ela sorria um sorriso de covinhas, as bochechas ainda com restos de cores,o cabelo amassado, retorcido atrás das orelhas..A um sinal da professora, todos os alunos levaram suas composições à mesa grande...Era preciso escolher a melhor..Percorrendo com os olhos cada folha,a menina conseguiu identificar torres, igrejas, praias,todas representadas com riqueza de detalhes.. A professora, séria, ia passando de um em um, analisando as linhas, a perspectiva, um ou outro elemento. Súbito,olhou para ela.. Onde estava o seu, a professora perguntou. Atrás das costas,meio amassada nas mãos, a menina estendeu a folha pesada e colocou-a na mesa,junto aos demais..A professora analisou, franziu a sobrancelha, perguntou o que era.. A menina explicou... A professora pediu detalhes. A menina não tinha. O que tinha era uma profusão de azuis, que tomava toda a superfície do papel em nuances sem nenhuma forma ou detalhe.. Então era isso que tinha feito nas férias?Apenas uma grande mancha azul?Os colegas riram. A professora balançou a cabeça. Desse jeito seria reprovada em composição... Voltou ao seu lugar. Engoliu a recomendação de que deveria estudar a técnica, ou melhor, as técnicas, pois assim como estava jamais poderia concluir o curso... A menina abalou a cabeça e olhou o desenho onde, ao contrário dos demais, ela conseguia ver cada momento das férias... Dobrou a folha, guardou na mochila, foi cuidar da técnica. Aprendeu perspectiva, composição, todos os elementos da sintaxe visual. Foi considerada apta. Saiu da escola e foi cuidar da vida... Aprendeu Matemática, História, Português.Formou-se. Arranjou um emprego. Alugou um apartamento. Paga seus impostos. Vez por outra é vista comprando papel e tinta, quase sempre azuis, para usos inexplicáveis.. E o desenho,das férias,continua guardado no canto mais fundo do armário. O menino escondeu-se atrás dos amigos. Numa longa fila cada um deveria executar um movimento, sob a avaliação da banca. Eram muitos os pés, apertados nas sapatilhas, sobre o linóleo frio. Ao final da sala os três professores aguardavam... A cada passo que dava o menino sentia mais enjoo e vontade de sair correndo. Ballet era isso? Era por isso que aguentava cotidianamente a gozação dos irmãos e a indiferença do pai?Repuxou nervosamente a malha, ajeitou a sapatilha e alongou os braços. À sua frente os amigos pareciam calmos, enquanto ele queimava...Aquelas longas horas de exame não se pareciam nada com a sensação que teve ao ver pela primeira vez o solo do famoso bailarino, que o inspirou a entrar nas aulas de dança. Soberbo, absoluto, leve, o artista parecia voar,seus pés mal tocando o chão do palco.. Muito diferente daquilo que o menino sentia,como se suas sapatilhas estivessem pregadas no chão... Até que, de passo em passo, chegou sua vez. Pensou morrer, quando ouviu seu nome ser chamado... Caminhou pela sala sem ter certeza de que ainda tinha pernas. Posicionou-se na barra.. E esperou..Não conseguiu ouvir nenhuma das ordens da professora. Apenas lembrava brevemente da ordem dos movimentos, mas não tinha certeza alguma se estava executando-os ou apenas sacudindo braços e pernas, sem direção alguma... A tortura durou meia hora...Assim que foi dispensado, o menino levantou-se, pegou a mochila,disparou pelo corredor e não parou mais de correr,até chegar em casa.Lá escondeu as sapatilhas no canto mais fundo do armário e nunca mais mexeu...Os anos passaram e o menino cresceu.Viajou bastante.Conheceu muitos lugares diferentes...Jantou em restaurantes exóticos.Dirigiu carros incríveis.. Vez por outra assiste a um ballet, da frisa mais cara, de onde sai encantado, olhos vermelhos, mãos retorcidas de dor.. As sapatilhas,contudo,continuam guardadas no armário. A menina repousou o rosto nas mãos. Era quase meia-noite e a festa continuava animada. Um a um ela via cada um dos seus amigos partirem para a pista de dança, mas ela continuava ali, sozinha..O medo era tão grande, que não conseguia arriscar um passo..Afinal de contas,não fora ela mesmo que dissera que a dança não era importante,quando saíra da última aula?Não conseguiria mesmo aprender as técnicas, o corpo não dava conta de tantas regras e ela se sentia inadequada e incapaz. Fora sempre essa a sensação que a expulsara de todas as aulas de dança que fizera. Ao final da última se convencera de que a dança, definitivamente não era pra ela...Tinha sido esse o diagnóstico da professora, reforçado pelos parentes e amigos,certos de que ela seria ótima em qualquer outra área. Mas era ali,no ritmo da música,no meio do salão, onde o coração pulsava e cada célula do seu corpo pedia pelo movimento,qualquer que fosse ele... Ao canto ela podia ouvir os risos das amigas, condenando qualquer coisa diferente de seus narizes... Ensaiou balançar os pés, mas derrubou uma das cadeiras próximas, chamando atenção para si.. Ouviu risos da mesa ao lado e o ar condescendente do garçom,que lhe oferecera um copo de guaraná...respirou fundo e tomou uma decisão. Levantou da cadeira. Caminhou meio a medo,para o centro do salão e ali fechou os olhos,sentindo o ritmo da música tomar seu corpo.. Começou a balançar-se lentamente,quando ouviu risadas..As moças da mesa ao lado,não havia dúvida, a olhavam e riam...Gelou o peito...Respirou fundo. Baixou os olhos.Tremia...Olhou as mulheres muito profundamente...Virou a cabeça. E saiu do salão...Foi para casa.As mulheres e os salões de dança nunca mais a viram, mas os vizinhos,aos domingos, costumam ouvir um arrastar de móveis e um som de música,abafado,sair de seu apartamento.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Recortes

Do vinco das roupas que acabaram de ser passadas. As mãos que ajeitam, nervosamente, a camisa, de frente para o espelho. O perfume de sabonete, misturado aos odores de limpeza, do chão que acabou de ser polido. O som do salto dos sapatos, que percorrem apressadamente o corredor. A maquiagem rescendendo no rosto, enquanto as mãos, trêmulas, ajeitam o penteado no reflexo do celular. E a alma nova, que transparece ao redor, o sorriso nervoso, ensaiado ontem no espelho, depois de uma semana de correria e espera. É hoje,as 10h,na abertura dos portões,que começa um novo ciclo,de contatos, frases,pessoas e a esperança,essa sim que não cabe dentro do peito, porque é natal,oras,época de renovar os caminhos,de molhar os pés no mar e agradecer o rumo diverso,sobre o singelo nome de “novas oportunidades para o período natalino”. Já de longe os recém-contratados são fáceis de identificar, basta olhar. Estão sorrindo, transbordam boa vontade, anseiam por serem úteis. Aos poucos, a loucura do consumo e o velho hábito da impaciência humana acabarão, infelizmente, por levar-lhes o restante de energia que tiverem. Mas,ah!,enquanto têm esperança e anseiam por um novo dia, como é maravilhoso ver-lhes, já no início do dia, as baterias recarregadas, procurando com os olhos os primeiros clientes. Daqui,do café onde escrevo,da confortável posição de espectadora que me coube,eu queria ter a mesma sensação de recomeço que consigo perceber em seus olhos. Que importa que o sistema os vá oprimir?Que o transporte vá lotar?Que o salário não vai ser suficiente?Nesse breve momento que congelo em minha retina, eles tudo podem, porque esperam.