domingo, 8 de abril de 2018

Tenho voltado continuamente, nesses dias tensos, a 1989, ano das primeiras eleições democráticas pós-ditadura....Talvez porque tenha crescido ouvindo as histórias apavorantes de um momento particular onde músicas, peças, livros e filmes eram censurados, em que estudantes era carregados por homens armados para porões de quarteis e torturas inimagináveis eram cometidas contra quem pensava diferente, a ditadura sempre me pareceu muito real, como são nossas memórias, quando temos seis anos de idade...O lado ruim dessa experiencia é que adquiri um medo enorme de qualquer forma de repressão e as prisões passaram a ser o lugar do meu pânico(poucos anos depois, eu conheceria a história de Mandela e passaria anos rezando por sua liberdade. Sim, sou dessas. Eu rezo por desconhecidos). Como era possível restringir a liberdade de alguém, que apenas exercia seu direito a viver de uma forma diferente ?Como era possível que existissem homens e mulheres que invadissem teatros, com armas e interrompessem a golpes de cassetete, peças teatrais? Lembro de ouvir meus pais contarem que, na faculdade, era costume cantar músicas a meia voz, para não serem ouvidos e denunciados como subversivos. Que poder terrível seria esse o de impedir uma canção ou um pensamento? Que ser tão maquiavélico poderia reprimir vozes que cantavam? Sim, eu tinha seis anos. Talvez por isso,1989 tenha sido gravado tão forte em minha memória. Lembro das ruas de Santa Teresa, tomadas de bandeiras, das estrelas vermelhas e lembro das canções...Para qualquer um que não possa compreender a política como parte fundamental do humano, pode parecer bobagem. Mas para mim, a reunião de pessoas com o objetivo de mudar o mundo, sempre foi irresistível. Parecia impossível não as ouvir em suas demandas, por educação de qualidade, saúde pública, justiça social e fortalecimento da economia. Não, eu não conhecia nenhuma dessas palavras. Não dessa forma. Mas eu sabia, desde aquele tempo, da extrema injustiça de se acreditar que alguns tem direito a viver e outros não. E que, para que todos conseguissem viver suas vidas, com trabalho, moradia, saúde e educação, todos tínhamos que trabalhar, muito. Sim, naquela época eu já ouvia e me encantava com os caras do Clube da Esquina dizendo que “um mais um é sempre mais que dois”...Não consigo explicar a vocês o que foi a derrota de 1989,para mim, nos meus onze anos...E do sabor amargo dos anos posteriores, em que Lula, o mesmo Lula proletário, sindicalista, nordestino, despenteado, em mangas de camisa, disputou as eleições...Digo ainda hoje que, para entender o governo Lula é preciso ter conhecido as universidades e escolas públicas federais(para citar apenas um exemplo) nos anos 1990. As salas de aula abandonadas. As paredes caindo aos pedaços. As greves constantes. Os laboratórios pré-históricos. Curiosamente, em poucas salas do CEFET, onde eu estudava, o ar-condicionado e os móveis eram novíssimos e abrigavam poucos funcionários, confortavelmente instalados...E então, tivemos 0 2003, o fabuloso ano em que “o povo chegou ao poder”.Eu já havia estudado isso em história, mas nada me prepara para ver aquele cara barbudo ser tomado por mãos populares, a caminho da posse. E parecia impossível que houvesse uma força maior do que essa, de romper o preconceito, o conservadorismo, os narizes torcidos e se tornar presidente. Mas houve. E a imprensa, atuando como partido político, iniciou o projeto do Mensalão, atirando contra o grande telhado de vidro que o Partido dos Trabalhadores criara, ao se associar à estrutura burocrática dos partidos brasileiros e incluir entre seus quadros velhos coronéis como José Sarney, tudo em nome da governabilidade...Somos afinal, uma federação e não se governa 200 milhões de pessoas sem uma gigante máquina administrativa, que conservava em seu interior uma estrutura monstruosa de corrupção intrinsecamente associada ao Estado e em acordos, muitos espúrios. De súbito, o sindicalista de 1989 se tornou o maior articulador do país, maior ainda do que era nas greves do ABC, quando dominava milhares de operários em seus discursos. A conta viria, eu tinha certeza, na insistência em governar com velhas estruturas de poder. Mas o fato, para o bem e para o mal, é que éramos 200 milhões de pessoas, pagando impostos(conversem com os economistas sobre todas as taxas que incidem sobre qualquer operação financeira cotidiana e saberão que TODOS, sem exceção, contribuem com a arrecadação) e assistindo, entre negociatas, nossas escolas, hospitais, indústrias sucateadas e a dívida pública(sim, havia na década de 80/90 uma entidade apavorante chamada dívida externa e outra ainda maior chamada FMI, que ameaçava cada um de nós e fazia com que engolíssemos o congelamento dos salários, a ausência de investimento em ciência e tecnologia, a fome e a morte de uma grande parcela da população) sufocar qualquer perspectiva de crescimento. Éramos afinal, um pais subdesenvolvido. Não sei bem quando as palavras dívida externa e FMI começaram a ser substituídas por indústria naval, construção de universidades e centros técnicos, programa de erradicação da fome e de habitação nas primeiras páginas dos jornais. O país cresceu. Continuávamos com demandas e nos apoiávamos em estruturas sociais arcaicas. Mas ainda tínhamos Lula e, mesmo fora do governo, a figura política deste senhor continuou mobilizando olhares, carregando o peso de ser - em um país onde os secretários de governo acreditam que favela e asfalto, sul e norte, negros e brancos são planetas diferentes- o presidente que uniu, por algum tempo, empresários e movimentos sociais em uma só pauta :o desenvolvimento social do país.Hoje,Lula é preso,por um judiciário que certamente nasceu em uma época onde as universidades públicas se tornavam uma realidade não apenas no Eixo Rio São Paulo, mas nos estados do norte e nordeste, onde os cientistas sociais podem refletir sobre a conjuntura política, os filósofos e historiadores podem pensar cenários e contextos e os economistas podem conjecturar soluções. São todos herdeiros de uma visão desse mesmo homem,que hoje é escoltado pela mesma polícia federal que ajudou a aparelhar, que acreditou que Filosofia e Sociologia deveriam ser disciplinas ensinadas aos alunos do ensino médio e que ciência, laboratórios equipados, cursos de pós-graduação e bolsas de estudo era uma maneira tão importante de desenvolver um país quanto um prato de comida para quem tivesse fome. Lula certamente passou fome. Mas certamente não estudou Sociologia na escola.Seu aprendizado vem das ruas, do longo percurso político como sindicalista(profissão que, para alguns, é curso de vagabundagem e terrorismo),das caravanas pelo país,em 2002 e 2017,conhecendo as necessidades de um povo,que também tinham sido as suas. Trabalho.Segurança. Habitação.Vinha sobretudo,da consciência(esotérica para alguns,que acreditam não viver em sociedade,mas em ilhas de segurança.Conheço muitos,em níveis diferentes de esquizofrenia ) de que vivemos em um coletivo e que nossa responsabilidade política vai muito além do voto..Implica a compreensão de que compartilhamos um mesmo espaço público e que todos,sem exceção, temos direito a saúde, educação,emprego,transporte.Sei que esse discurso parece comunista e é,no que o comunismo,em teoria tem de mais exato:um governo de homens que pensam e agem coletivamente.Sei que em muitos cenários, o ideário comunista foi suplantado,esquecido, pervertido em sistemas autoritários de poder. Mas, uma vez que vivemos coletivamente, não seria através de uma solução para poucos, que governaríamos muitos. E nesse exato momento, em que escrevo nesse texto a palavra “coletivamente”, me vem à memória a imagem de Lula, carregado pela multidão, protegido por milhares de corpos, envolto em uma imensidão de afeto. O mesmo Lula que fora,38 anos, carregado pela multidão, nas greves do ABC e tivera seu rosto tomado por mãos de trabalhadores, em suas andanças pelo país. Não espero que a classe média, aquela mesma que vê diferença entre favela e asfalto, nordeste e sudeste, negros e brancos,compreenda a imensidão dessa cena,deste senhor de 72 anos,envolvido pela multidão.Nem eu mesma ouso compreender.Por muitos anos, critiquei Lula,pelos acordos, pela insistência em negociar com todos,pela teimosia em apostar no consumo, pelo pragmatismo em aceitar modelos como o de Segurança, como o único possível.Hoje,esse mesmo homem,20 anos mais velho,é encaminhado para a prisão, por um crime cuja prova não existe(não me venham falar de fotos,áudios, testemunhas.Bem sabemos que ,à letra fria da lei,a assinatura é o que comprova a propriedade)envolvido por todos aqueles que habitaram desde sempre seus pensamentos.Professores,médicos, sindicalistas, políticos,engenheiros, técnicos, repórteres, policiais federais, juízes, advogados, muitos formados pelas instituições que ele ajudou a construir. Funcionários de empresas públicas fortalecidas pelo projeto econômico que ele sonhou.Do lado de lá, em outros países, cidadãos brasileiros, emigrados por programas, incentivos,oportunidades de viver no exterior(em países com um forte Estado de bem estar social,diga-se de passagem), muitos críticos dos programas sociais brasileiros, assistem e comemoram sua prisão. Falam de igualdade, de justiça para todos, clamam pela limpeza do Estado brasileiro e a retomada do crescimento, comemorando a prisão do único presidente que realmente compreendeu e executou a ideia de igualdade e crescimento e o fez, em mangas de camisa, entre metáforas de futebol e piadas,que, nunca antes na historia desse país,estiveram presentes em discursos oficiais... Se a justiça,essa mesma justiça que é pedida,entre palavras de ódio fosse uma realidade, haveria a partir de amanhã um outro governo, um outro Estado e as linhas da constituição que descrevem os direitos e garantias fundamentais seriam cumpridas(Agora mesmo acabo de ler mais uma matéria sobre arquivamento do processo contra um certo senador mineiro..).Amanhã, processos continuarão a serem arquivados, armas continuarão a serem distribuídas pelas ruas como mecanismo de “segurança”, escolas,hospitais e universidades públicas continuarão a agonizar. Por isso, não me venham falar de Justiça, quando não compreendem o significado desta palavra. Ela não passa definitivamente pelo ódio ou pela ideia de que nossos privilégios devem ser mantidos para poucos. Ela passa por distribuição de renda, pelo equiparidade salarial, por acesso à educação e saúde, a formação continuada, por incentivo a ciência e tecnologia. Por uma imprensa livre. Por pensamento crítico, fomentado pelas famigeradas ciências humanas nos bancos escolares, nos bares, nas esquinas, nas ruas. E é de posse dessa liberdade de ser, de se entender como parte de um coletivo e da responsabilidade de ser parte de uma sociedade, que posso afirmar que Lula não está preso. Está por aí. Fomentando imaginários, a cada vez que sua imagem em meio à multidão é compartilhada, visualizada, debatida. Resta-nos prosseguir. Há dois lados possíveis: o daqueles que se compreendem como parte de uma coletividade, igualmente inseridos em processos políticos que atravessam e compõem seu cotidiano. Sejam eles bem ou mal informados sobre política(que nada ou quase nada tem a ver apenas com partidos políticos), sobre termos complexos e estatísticas. Sabem-se parte de um grupo social, seja a rua, a vila, o bairro e compreender que o respeito é o único caminho possível para sobreviver. E há aqueles que acreditam que a política não faz parte de suas vidas. A esses, a ignorância, o medo e o ódio costumam visitar, em intervalos regulares. Clamam por justiça, mas estabelecem pesos diferentes entre mortes e vidas. A esses ofereço apenas, nesse tão longo texto, meu mais profundo silêncio...

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Ah!O sagrado.E sua inevitável aura de utopia e sangue. Por entre nossos passos, milhares de sons, ancestrais, pungentes, galgando a história,tijolo a tijolo... Enquanto caminho, ouço o murmurar das vozes, antevejo as cabeças baixas,as mãos postas, os pedidos saindo a medo da boca, o olhar fechado,doloroso...Aqui e ali,alguns joelhos tocam o chao, penitentes. Mas é a alma que se cuva diante do belo, dos fragmentos de azul e dourado, das paredes infinitas.Ali, por alguns instantes, fé e arte se tornam uma coisa só,na curva do tempo,aguardando mais um piscar de olhos da história.







terça-feira, 28 de novembro de 2017

memória,chuva e viagens no tempo

Há quem diga que os afetos são coisa dos sensíveis, gente muito louca e sonhadora.Eu, modestamente, penso que lhes cabe parte fundamental do humano,uma vez que somos e não podemos deixar de ser, seres simbólicos por natureza ou (in)felicidade..Assim, persiste no que somos uma mistura de cheiros e sons, de palavras e músicas que entranham na carne e, por vezes,nos movem de lugar,propondo verdadeiras viagens no tempo...A ideia nao é nova e foi suficientemente bem observada por gente boa como Bergson e que tais, para eu me dar o direito de somente flanar superficialmente pelas ideias. Sobretudo,quando a memória atravessa a rua, chega até você. Sem avisar,no meio do caos do centro do Rio,entre poças de água e sons de carros,um perfume me levou ate Santa Teresa, na casa da minha avó, com o barulho suave dos passos no piso de madeira, na modorra familiar do pós-almoço..A tv ligada solitariamente na sala e o sol de um dia cinza criavam sombras da parede de pedra e o vento que empurrava as cortinas para fora.Enquanto eu esperava a hora de subir a rua e comprar o pão, sentia o aroma cítrico do pós-barba do meu tio,saído do banho,msiturado ao feijão e arroz que rescendia na mesa e ao aroma da terra molhada das plantas da minha avó..Era o mesmo cheiro das idas ao cinema nos sábados, ou das vezes em que ele chegava do trabalho,recebia o meu invariável bilhetinho,pedindo pra ser acordada(me parecia uma magia incomparável,acordar no meio da madrugada)por ele e dar um oi antes de voltar a dormir.. Enquanto ouço o alarme do relógio da minha avó tocar,um ruído atravessa a sala.O freio do ônibus na rua ao lado.Estou de volta à Rua Presidente Vargas, na chuva,em um novembro igualmente cinzento,mas sem as memoóias afetivas da minha infância.

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

morte, substantivo feminino

morte substantivo feminino 1. interrupção definitiva da vida de um organismo. 2. fim da vida humana. Ao receber a notícia da morte de alguém seria justo que entendêssemos que tal vida se extinguiu, acabou.Assim, cada pensamento, vivência,memória, deveria morrer também, apagando por completo a passagem desse sujeito pelo planeta...Mas e quando a pessoa em questão viveu plenamente, amou com paixao,dedicou cada um dos seus dias a lutar por um mundo melhor, deixou que seus olhos brilhassem de alegria, diante de uma novidade, ou de raiva por uma, entre tantas injustiças?Além disso,perpetuou-se em descendentes, formados nos mesmos sonhos?Nesse caso diriamos, que essa pessoa nao morreu, posto que sua imagem,suas ideias, continuam vivos, nos ecos da sua fala, nas pessoas que amou, nos sonhos ja realizados e naqueles ainda por realizar..E assim pensando, nos veriamos como eternos,cabendo ao fenomeno da morte apenas o beneficio da saudade...

domingo, 13 de agosto de 2017

Sobre saquinhos de pipoca. E pessoas.

Dia desses recebi na minha timeline a informação de que uma mãe solicitara a retirada do pipoqueiro da frente da escola, porque seu menino não podia comer mais a guloseima e ela não sabia dizer não...Então o problema deveria ser solucionado com o fim das pipocas para as demais crianças. Corta para o dia dos pais. Tenho acompanhado ao longo do tempo os crescentes debates sobre o dia das mães, dos pais e das avós. Muita gente argumenta que as festas fomentam o trauma das crianças, porque constroem a ideia de um modelo de pai e mãe para famílias cada vez mais plurais. Justo. Outro argumento também bastante plausível é que mães e pais trabalham em tempo integral em muitas das famílias e as tais festas tem lugar em dias e horários proibitivos. Por fim, há ainda um argumento que fala sobre a ausência paterna/materna, seja por falecimento ou abandono.Agora vamos lá, por partes, como pretendia Jack, ao argumento número 1. Falando sobre abandono, é possível entender que, de modo algum tal ausência seria compensada pela supressão da festa. Ao contrário. Ele perpetua em festinhas de aniversário, encontros, formaturas, apresentações de dança... A eliminação de uma festa não resolve um problema que é o abandono... Na urgência de minorar o sofrimento totalmente justificado de nossos meninos estamos excluindo o pipoqueiro, quando o problema não é a pipoca. Não eliminaremos o trauma de crianças com a eliminação de uma festa, mas com a criação de filhos mais sensíveis à família (qualquer que seja ela), que se tornarão pais presentes e que, independente da dissolução do casamento, continuarão participando da criação dos filhos. Não só no dia dos pais. Mas em todos os dias. O texto já está grande, mas ainda sobra tempo para pensar que a eliminação da festa das mães também não criará meninos e meninas mais tolerantes. Será a ideia de que o lugar de mãe pode ser ocupado por tias, tios, avós, pais e todo aquele que ocupar tal lugar afetivo. E por que não chamar avós, tios etc., para a festa das mães (e dos pais) e fazer também uma grande festa da família, com tios e primos e amigos que participam dessa família? Aliás, por que afinal estamos nos preocupando com as festas e não com a criação dos meninos nos outros 364 dias do ano? Seria por medo de reconhecer nossas falhas, admitir nossa intolerância com outros modelos de família e relacionamentos além de nossa curta compreensão? Por que se chegarmos a esse ponto entenderemos finalmente que crianças podem sim ser criadas por mães e pais, casais de mães, casais de pais, avós e tios e amigos e todos aqueles que se responsabilizarem permanentemente por esses meninos? Aí ficará fácil entender que a festa das mães pode ter mães e pais e tios. Porque homenageia as mães de filhos de suas próprias barrigas. E de outras barrigas. E as pessoas, de todos os sexos, gêneros, identidades, identificações, que também exercem sua maternidade com muita coragem em um país onde ainda usamos a expressão "mãe solteira" e exaltamos os pais/mães e companheiros (as) que se relacionam com mulheres/homens com filhos, como se fosse o extraordinário e não o cotidiano entre adultos. Relações vêm e vão. Transformam-se. Filhos são permanentes...Na pressa de reconhecer o óbvio, que é o fato de que somos (e sempre fomos)uma sociedade muito diferente do que pensou por certo tempo a publicidade e na pressa de mudar, jogamos fora a pipoca e o pipoqueiro, sem pensar onde está verdadeiramente o problema. E se me permitem uma digressão pessoal, fui "mãe solteira”, divorciada e assim, “fora do padrão" nessa mesma sociedade...Sofri por não estar presente em festas das mães que aconteciam no horário de trabalho. Já frequentei aniversários em que eu era o objeto de curiosidade, seja pela idade ou pelo estado civil...Ser mãe (da própria barriga ou não)não é tarefa para principiantes...Vez por outra fraquejamos. É justo que tenhamos um dia pra receber um beijo, uma colher de pau(precisamos problematizar os presentes de dia das mães,urgente!),um pano dar prato, um desenho tosquinho, que guardaremos para todo o sempre e exibiremos diante de namorados, amigos e afins( para desespero total da cria, diga-se de passagem ). Também é justo que todo aquele que se reconhecer como mãe possa receber tal homenagem. Necessário que cada mãe e pai (qualquer que seja sua forma de exercê-la, desde que com afeto) entenda que seu lugar de maternidade não está somente vinculado à genética(não basta ser tem que participar) e que, tomara Deus, possamos ter muitas festas das mães,pais,avós com referências cada vez mais múltiplas,sensíveis,inclusivas... Feliz dia dos pais a todos aqueles que se identificarem com o título . Bom restinho de domingo

quinta-feira, 27 de abril de 2017

no coração da loucura

Para chegar ao coração da loucura é preciso caminhar. Dobrar as esquinas, entre ruas não nomeadas, seguir adiante frente a informações imprecisas e moradores que certamente não saberão indicar uma direção correta, prosseguir por entre as grades do hospital psiquiátrico Pedro II, atravessar o jardim permeado de folhas mortas, virar à esquerda, cruzar a sala do acervo do Museu do Inconsciente e ali, no final do corredor, acessar o acervo das obras realizadas pelos artistas que residiram no Instituto Nise da Silveira. Ao entrar na sala, cheia até o teto, de obras as mais diversas, começamos a mergulhar no oceano profundo da loucura. Em cada pincelada, as cores, intensas, desesperadas, nos encaram do alto das molduras pregadas nas paredes e nos mostram aquilo que somos: iguais, em nossas emoções e medos. Pequenos e frágeis, diante do outro, dotados de uma magia estranha, poderosa, quando mergulhamos em nosso interior ...Crueis, quando tentamos normatizar o que o outro pode ou não pode ser....Diante de meus olhos vejo duas esculturas, lado a lado: a primeira, de traços harmoniosos, branca, com curvas sinuosas e precisas. A segunda, uma massa disforme, resultado da lobotomia no autor de ambas as obras. A diferença entre as duas obras ressoa como um tapa na cara, uma interrupção abrupta do fluxo de arte que provavelmente escorria pelas mãos do escultor, impedido permanentemente de criar. Uma bela contribuição da sociedade em prol da ordem e do progresso.#soqn Ao avançarmos no jardim, inspirada pelas palavras do guia, imagino o amontoado de corpos, antes da Dra. Nise da Silveira colocar seus pés ali. Um pouco antes dela, o espaço já fora uma horta para mulheres condenadas, confirmando o histórico do lugar para aprisionar corpos. Mas esses mesmos corpos, encarcerados, não conseguiam ficar presos de todo. Era ali, na sala de terapia ocupacional que os internos libertavam-se, ganhavam asas, fugiam das limitações cotidianas, mergulhavam dentro deles mesmos...O resultado está ali, nas milhares de telas e esculturas armazenadas no museu...Em cores que grudam em nossas retinas, em figuras de sonhos, imagens de sensações, mandalas diversas.... Tudo pulsa...Como se acompanhando o pulsar das obras, ouve-se o som de um batuque, no fundo do quintal...Seguimos até lá e, chegando no Instituto Travessias, somos invadidos por uma profusão de cores, som e movimento...Entramos no momento da apresentação de um grupo de carimbó e a sala se enche de chitas, cetim vermelho e chapéus de palha. A ordem é clara: todos ao centro da roda. É proibido ficar parado. Uma saia florida, como de costume, me encontra e, sou convidada a dançar. ...Quem seriam os loucos, os profissionais de saúde, os visitantes? Estamos todos misturados, balançando nossos corpos e girando sem parar ao som do carimbó. Ali, no meio das saias e mãos que giram, reside o coração da loucura, algo impossível de diagnosticar ou mesmo de localizar em uma pessoa qualquer.Sacwrese somos loucos, somos todos e juntos.

segunda-feira, 20 de março de 2017

Sobre narrativas e memórias

O que vocês pensam, quando imaginam uma aula de doutorado? Muita teoria, digamos assim, professor em sua mesa, textos científicos, silêncio? Pois é, eu também pensava isso. Até hoje. Chego atrasada ao 11ᵒ andar da UERJ, subindo os milhares de quilômetros (pelo menos para mim) de rampas que me separavam da sala de aula, procuro o local correto, erro a porta, volto ao corredor, me desespero porque estou 35 minutos atrasada em uma aula com um professor desconhecido, em um programa que não é o meu. Percorro os longos corredores do andar, tento uma porta e me deparo com uma sala de aula cheia. Paro na porta. No meio da sala organizada em roda, uma menina, um livro cheio de ilustrações na mão, contava uma história para os demais alunos. Devo ter feito uma cara de espanto tão grande que provocou olhares, o que me fez perguntar: aqui é a aula do professor fulano? Era. Me recolhi ao fundo da sala e esperei-a terminar a narrativa, que falava da importância das memórias...Já começava a pensar em como ia sair da sala, pensando tratar-se de um engano, quando o professor tomou a palavra, se apresentou e pediu que nos apresentássemos. Antes, pediu que fossemos até a mesa que - agora eu notava- estava cheia de objetos, brinquedos inclusive... Em silêncio, cada um pegou uma coisa e voltou para seu lugar. Um por um, fomos falando dos objetos que estavam em nossas mãos, relatando um fato curioso, uma lembrança que nos veio à cabeça através dele...Aos poucos, fomos ouvindo as histórias de cada um, tornando-as nossas, conhecendo um fragmento da vida de todos os alunos...Finalizada a dinâmica, o professor retomou a palavra e começou a falar de memória, do tempo da vida, do intervalo entre a percepção e as ações, onde cabem todas as coisas, entrelaçadas por memórias. E eu, que vinha de uma certa implicância com o universo do autor que seria estudado, me rendi aos encantos do tempo, justamente (vejam só a ironia), quando, dizem, inicia-se a era de Saturno, Deus do Tempo. Mas, ao contrário do que se pensa, Saturno não é somente o tempo cronológico, mas o tempo da percepção e dos afetos. Em nossa vivência no mundo, a cada passo, somos afetados por pessoas e coisas, criando laços de tempo e movimento que se tornam, inadvertidamente, memória. Contar uma história é resgatar, entre sentimentos e imagens, fragmentos de tempo e experiências, que juntamos às linguagens mais diversas, tornando-as comuns. O que torna a narrativa mais bela não é somente a escolha sistemática de palavras para compor nossas frases, mas o quanto nos esforçamos para fazer dessas histórias um lugar compartilhado, de modo que cada um que ouça possa colocar um tanto de si ali, se apropriando também de um tantinho de nós. Para isso, mais importante do que saber falar, é esforçar-se para ouvir. Na troca afetiva que se dá, a comunicação, como espaço entre, constroi pontes entre os sujeitos, tornando-os parte de um tempo em comum. E nos tornamos eternos porque, ao compartilharmos um tanto de nós, marcamos e deixamo-nos marcar pelas memorias que chegam até nós...Se cada história se tornará um livro, um filme ou um post, isso ficará a cargo de cada um...O importante, talvez a lição mais relevante de toda a experiencia, é não apressar o intervalo de percepção, em benefício de uma resposta rápida. Somos maiores, na medida em que nos permitimos ouvir as engrenagens de nossas sensações e memórias e emaranhá-la, em um tempo que não é possível controlar, em uma trama irremediavelmente afetiva, com todo aquele que cruzar nosso caminho...