domingo, 3 de abril de 2022

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

sobre amor

É preciso conectar-se ao amor mesmo quando ele sangra mesmo quando sufoca mesmo quando ele grita mesmo quando é morte em vez de vida. É preciso conectar-se ao amor mesmo quando um vento frio atravessa a alma e e apaga subitamente, as velas que residem nos móveis. É preciso seguir, posto que é deste lugar,que pulsa e sangra,que advém o componente de magia com a qual fazemos dancar a vida.Elemento primordial que nos faz humanos. Ainda que não persista,ele aprofunda, delinea caminhos,desvios,fluxos de água, mar e rio, palavras e gestos,corpos que pulsam diante do ser.Encontros que se firmam no instante do toque, no intervalo do não. O amor intensa e desmesuradamente É.E através de suas aguas seguimos, passageiros incertos diante de um oceano de metáforas.sempre esperando a próxima onda,sem saber se esta será a derradeira, que nos irá afogar para todo sempre.. e de todo só resta o silêncio que por vezes paira na aura e a coragem de mergulhar.

domingo, 15 de março de 2020

Fluxos

Por Debora Restum e Tati Mendes


No toque dos corpos, no fluxo da vida, a pele segue a urgência do sentir caminho que passa por sangue,suor e lágrimas Poesia feita de poeira e sonhos.. Desejo que rompe as amarras do cotidiano e ousa ser voz, energia, na coragem de ser nós, faca que corta a carne, aperta o peito, mãos que se abrem à revelia do Eu... E enquanto cada segundo, no correr do relógio risca na alma um instante a menos do existir, a vida ousa ser mergulho, no inesperado, caminho indefinido entre o sim e o não,onde não há controle, só o movimento constante de sons e imagens, só o corpo que treme diante do caos e a paixão da vida. Diante de si o medo. Medo de deixar de ser Medo de não ser mais Mas só se é no fluxo. É preciso assumir o risco de abrir as mãos e cerrar os olhos para sentir o sutil toque do novo sob a pele que ainda sangra sobre os sonhos e a ousadia de tentar reter as engrenagens do tempo. Porque será em vão. Às janelas trancadas, a inevitável poeira dos dias adentra a casa Ao menor descuido, o mar invade a alma, inescapável, em todas as suas metáforas. E a única coisa fazer é ter a coragem de deixar-se ir,sem direção ou controle. Onde o único caminho possível é soltar as amarras e mergulhar,corpo e alma, medo e desejo, luz e escuridão.. Porque ha um instante, que não se ousa reter e caminhar, nas nas galáxias intermináveis que ligam o nós. No meio desgovernado do ser, no entre da gente, na vida que transborda vida, na alquimia sem catálogo do que esta sempre por vir. Inédito pela comunhão de ser. Outro e outro e outro, no desenrolar de experienciar mundo.E outros mundos são criados na cadência de estrelas.Não há narrativa prévia, não há roteiro, não há enredo. Não há garantias.Há uma obra aberta para a vida e a morte para além do fim. Não há fim. Há movimento. Fluxo que amedronta e surpreende na sutileza de ser grande, na certeza de ser inteiro, e no dinamismo de ser livre.

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Murmúrios da cidade

Andando pela cidade a gente pratica a cartografia das escutas, vai mapeando pelas ruas as falas e gestos do povo e assim entendendo um pouco de um espaço compartilhado, de sentir e de conviver...No colorido das roupas, no comércio popular é onde as trocas acontecem e é muito interessante perceber a mudança dos rostos, o ar de festa, a fila para vender ( e comprar) o body amarelo, as camisas numeradas esticadas no meio do passeio, os ambulantes contando piadas do jogo anterior... Nessa fluxo incessante de gente e falas, de imagens e sons é impossível determinar onde começa e onde termina o espaço de cada um. De que cidade falamos? Do traçado de cada ponta do VLT? Dos novos canteiros da prefeitura? Dos músicos de rua atravessando a Rio Branco com seu violino? Do artesão de arame ou do vendedor de livros, dos corredores de camelôs, dos territórios de cada morador de rua, das nuvens de executivos, advogados, idosos, nas vitrines das farmácias, nas mesas dos cafés. Quem pode determinar o que faz ou não faz parte da cidade? De certo não é o prefeito, ou a prefeitura, que notadamente não ouvem os fluxos diversos e não são capazes de perceber a quantidade de cidades diferentes que se cruzam, se desafiam, rompendo e reinventando fronteiras. Todos os dias. Quem ousaria determinar o quarteirão do Teatro ou da Biblioteca como o único caminho possível? Quem poderia dizer quais os melhores ângulos ou os enquadramentos possiveis? quais narrativas deveriam sobreviver ou serem dizimadas? Não seria alguém que não compreendesse essa cidade como plural, como palco de negociações e conflitos, ressignificações e encontros. Sem pisar na rua, sem ouvir a cidade, o único caminho possível é a intolerância.







Estive recentemente em uma aula de História do Rio de Janeiro no MAR. De todas as falas, a que mais me tocou foi quando em, um dado momento, o professor explicava da formação do território, das muitas cidades presentes em um mesmo espaço, atravessado por diversas culturas e marcadamente negra e indígena. Aqui e ali terreiros, giras, ladeiras, quintais, praças, rodas, falas, gestos, desafios, conflitos, formando uma colcha de retalhos que hoje convencionamos chamar de Rio. No projeto da cidade que até hoje ilustra os cartões postais e projetos turísticos, não sobrevive o extracampo, as falas silenciadas, as histórias de vida, os rituais, as rezas, as comidas, as mãos e braços, as cores diversas. Temos um espaço riscado a lápis, saindo das plantas para os imaginários que fomenta nossa ideia de lugar...mas se olharmos bem, aqui e ali, em cada imagem vista ouvem-se murmúrios, gritos, lamentos, um rastro de sangue e suor, sobrando das calçadas, descolando os paralelepípedos, percorrendo os postes, subindo a ladeira dos morros e tomando para si o espaço roubado...ainda somos a mesma cidade negra e indígena, das rodas e rezas, atravessando o cotidiano e sobrevivendo em meio ao caos.

domingo, 8 de abril de 2018

Tenho voltado continuamente, nesses dias tensos, a 1989, ano das primeiras eleições democráticas pós-ditadura....Talvez porque tenha crescido ouvindo as histórias apavorantes de um momento particular onde músicas, peças, livros e filmes eram censurados, em que estudantes era carregados por homens armados para porões de quarteis e torturas inimagináveis eram cometidas contra quem pensava diferente, a ditadura sempre me pareceu muito real, como são nossas memórias, quando temos seis anos de idade...O lado ruim dessa experiencia é que adquiri um medo enorme de qualquer forma de repressão e as prisões passaram a ser o lugar do meu pânico(poucos anos depois, eu conheceria a história de Mandela e passaria anos rezando por sua liberdade. Sim, sou dessas. Eu rezo por desconhecidos). Como era possível restringir a liberdade de alguém, que apenas exercia seu direito a viver de uma forma diferente ?Como era possível que existissem homens e mulheres que invadissem teatros, com armas e interrompessem a golpes de cassetete, peças teatrais? Lembro de ouvir meus pais contarem que, na faculdade, era costume cantar músicas a meia voz, para não serem ouvidos e denunciados como subversivos. Que poder terrível seria esse o de impedir uma canção ou um pensamento? Que ser tão maquiavélico poderia reprimir vozes que cantavam? Sim, eu tinha seis anos. Talvez por isso,1989 tenha sido gravado tão forte em minha memória. Lembro das ruas de Santa Teresa, tomadas de bandeiras, das estrelas vermelhas e lembro das canções...Para qualquer um que não possa compreender a política como parte fundamental do humano, pode parecer bobagem. Mas para mim, a reunião de pessoas com o objetivo de mudar o mundo, sempre foi irresistível. Parecia impossível não as ouvir em suas demandas, por educação de qualidade, saúde pública, justiça social e fortalecimento da economia. Não, eu não conhecia nenhuma dessas palavras. Não dessa forma. Mas eu sabia, desde aquele tempo, da extrema injustiça de se acreditar que alguns tem direito a viver e outros não. E que, para que todos conseguissem viver suas vidas, com trabalho, moradia, saúde e educação, todos tínhamos que trabalhar, muito. Sim, naquela época eu já ouvia e me encantava com os caras do Clube da Esquina dizendo que “um mais um é sempre mais que dois”...Não consigo explicar a vocês o que foi a derrota de 1989,para mim, nos meus onze anos...E do sabor amargo dos anos posteriores, em que Lula, o mesmo Lula proletário, sindicalista, nordestino, despenteado, em mangas de camisa, disputou as eleições...Digo ainda hoje que, para entender o governo Lula é preciso ter conhecido as universidades e escolas públicas federais(para citar apenas um exemplo) nos anos 1990. As salas de aula abandonadas. As paredes caindo aos pedaços. As greves constantes. Os laboratórios pré-históricos. Curiosamente, em poucas salas do CEFET, onde eu estudava, o ar-condicionado e os móveis eram novíssimos e abrigavam poucos funcionários, confortavelmente instalados...E então, tivemos 0 2003, o fabuloso ano em que “o povo chegou ao poder”.Eu já havia estudado isso em história, mas nada me prepara para ver aquele cara barbudo ser tomado por mãos populares, a caminho da posse. E parecia impossível que houvesse uma força maior do que essa, de romper o preconceito, o conservadorismo, os narizes torcidos e se tornar presidente. Mas houve. E a imprensa, atuando como partido político, iniciou o projeto do Mensalão, atirando contra o grande telhado de vidro que o Partido dos Trabalhadores criara, ao se associar à estrutura burocrática dos partidos brasileiros e incluir entre seus quadros velhos coronéis como José Sarney, tudo em nome da governabilidade...Somos afinal, uma federação e não se governa 200 milhões de pessoas sem uma gigante máquina administrativa, que conservava em seu interior uma estrutura monstruosa de corrupção intrinsecamente associada ao Estado e em acordos, muitos espúrios. De súbito, o sindicalista de 1989 se tornou o maior articulador do país, maior ainda do que era nas greves do ABC, quando dominava milhares de operários em seus discursos. A conta viria, eu tinha certeza, na insistência em governar com velhas estruturas de poder. Mas o fato, para o bem e para o mal, é que éramos 200 milhões de pessoas, pagando impostos(conversem com os economistas sobre todas as taxas que incidem sobre qualquer operação financeira cotidiana e saberão que TODOS, sem exceção, contribuem com a arrecadação) e assistindo, entre negociatas, nossas escolas, hospitais, indústrias sucateadas e a dívida pública(sim, havia na década de 80/90 uma entidade apavorante chamada dívida externa e outra ainda maior chamada FMI, que ameaçava cada um de nós e fazia com que engolíssemos o congelamento dos salários, a ausência de investimento em ciência e tecnologia, a fome e a morte de uma grande parcela da população) sufocar qualquer perspectiva de crescimento. Éramos afinal, um pais subdesenvolvido. Não sei bem quando as palavras dívida externa e FMI começaram a ser substituídas por indústria naval, construção de universidades e centros técnicos, programa de erradicação da fome e de habitação nas primeiras páginas dos jornais. O país cresceu. Continuávamos com demandas e nos apoiávamos em estruturas sociais arcaicas. Mas ainda tínhamos Lula e, mesmo fora do governo, a figura política deste senhor continuou mobilizando olhares, carregando o peso de ser - em um país onde os secretários de governo acreditam que favela e asfalto, sul e norte, negros e brancos são planetas diferentes- o presidente que uniu, por algum tempo, empresários e movimentos sociais em uma só pauta :o desenvolvimento social do país.Hoje,Lula é preso,por um judiciário que certamente nasceu em uma época onde as universidades públicas se tornavam uma realidade não apenas no Eixo Rio São Paulo, mas nos estados do norte e nordeste, onde os cientistas sociais podem refletir sobre a conjuntura política, os filósofos e historiadores podem pensar cenários e contextos e os economistas podem conjecturar soluções. São todos herdeiros de uma visão desse mesmo homem,que hoje é escoltado pela mesma polícia federal que ajudou a aparelhar, que acreditou que Filosofia e Sociologia deveriam ser disciplinas ensinadas aos alunos do ensino médio e que ciência, laboratórios equipados, cursos de pós-graduação e bolsas de estudo era uma maneira tão importante de desenvolver um país quanto um prato de comida para quem tivesse fome. Lula certamente passou fome. Mas certamente não estudou Sociologia na escola.Seu aprendizado vem das ruas, do longo percurso político como sindicalista(profissão que, para alguns, é curso de vagabundagem e terrorismo),das caravanas pelo país,em 2002 e 2017,conhecendo as necessidades de um povo,que também tinham sido as suas. Trabalho.Segurança. Habitação.Vinha sobretudo,da consciência(esotérica para alguns,que acreditam não viver em sociedade,mas em ilhas de segurança.Conheço muitos,em níveis diferentes de esquizofrenia ) de que vivemos em um coletivo e que nossa responsabilidade política vai muito além do voto..Implica a compreensão de que compartilhamos um mesmo espaço público e que todos,sem exceção, temos direito a saúde, educação,emprego,transporte.Sei que esse discurso parece comunista e é,no que o comunismo,em teoria tem de mais exato:um governo de homens que pensam e agem coletivamente.Sei que em muitos cenários, o ideário comunista foi suplantado,esquecido, pervertido em sistemas autoritários de poder. Mas, uma vez que vivemos coletivamente, não seria através de uma solução para poucos, que governaríamos muitos. E nesse exato momento, em que escrevo nesse texto a palavra “coletivamente”, me vem à memória a imagem de Lula, carregado pela multidão, protegido por milhares de corpos, envolto em uma imensidão de afeto. O mesmo Lula que fora,38 anos, carregado pela multidão, nas greves do ABC e tivera seu rosto tomado por mãos de trabalhadores, em suas andanças pelo país. Não espero que a classe média, aquela mesma que vê diferença entre favela e asfalto, nordeste e sudeste, negros e brancos,compreenda a imensidão dessa cena,deste senhor de 72 anos,envolvido pela multidão.Nem eu mesma ouso compreender.Por muitos anos, critiquei Lula,pelos acordos, pela insistência em negociar com todos,pela teimosia em apostar no consumo, pelo pragmatismo em aceitar modelos como o de Segurança, como o único possível.Hoje,esse mesmo homem,20 anos mais velho,é encaminhado para a prisão, por um crime cuja prova não existe(não me venham falar de fotos,áudios, testemunhas.Bem sabemos que ,à letra fria da lei,a assinatura é o que comprova a propriedade)envolvido por todos aqueles que habitaram desde sempre seus pensamentos.Professores,médicos, sindicalistas, políticos,engenheiros, técnicos, repórteres, policiais federais, juízes, advogados, muitos formados pelas instituições que ele ajudou a construir. Funcionários de empresas públicas fortalecidas pelo projeto econômico que ele sonhou.Do lado de lá, em outros países, cidadãos brasileiros, emigrados por programas, incentivos,oportunidades de viver no exterior(em países com um forte Estado de bem estar social,diga-se de passagem), muitos críticos dos programas sociais brasileiros, assistem e comemoram sua prisão. Falam de igualdade, de justiça para todos, clamam pela limpeza do Estado brasileiro e a retomada do crescimento, comemorando a prisão do único presidente que realmente compreendeu e executou a ideia de igualdade e crescimento e o fez, em mangas de camisa, entre metáforas de futebol e piadas,que, nunca antes na historia desse país,estiveram presentes em discursos oficiais... Se a justiça,essa mesma justiça que é pedida,entre palavras de ódio fosse uma realidade, haveria a partir de amanhã um outro governo, um outro Estado e as linhas da constituição que descrevem os direitos e garantias fundamentais seriam cumpridas(Agora mesmo acabo de ler mais uma matéria sobre arquivamento do processo contra um certo senador mineiro..).Amanhã, processos continuarão a serem arquivados, armas continuarão a serem distribuídas pelas ruas como mecanismo de “segurança”, escolas,hospitais e universidades públicas continuarão a agonizar. Por isso, não me venham falar de Justiça, quando não compreendem o significado desta palavra. Ela não passa definitivamente pelo ódio ou pela ideia de que nossos privilégios devem ser mantidos para poucos. Ela passa por distribuição de renda, pelo equiparidade salarial, por acesso à educação e saúde, a formação continuada, por incentivo a ciência e tecnologia. Por uma imprensa livre. Por pensamento crítico, fomentado pelas famigeradas ciências humanas nos bancos escolares, nos bares, nas esquinas, nas ruas. E é de posse dessa liberdade de ser, de se entender como parte de um coletivo e da responsabilidade de ser parte de uma sociedade, que posso afirmar que Lula não está preso. Está por aí. Fomentando imaginários, a cada vez que sua imagem em meio à multidão é compartilhada, visualizada, debatida. Resta-nos prosseguir. Há dois lados possíveis: o daqueles que se compreendem como parte de uma coletividade, igualmente inseridos em processos políticos que atravessam e compõem seu cotidiano. Sejam eles bem ou mal informados sobre política(que nada ou quase nada tem a ver apenas com partidos políticos), sobre termos complexos e estatísticas. Sabem-se parte de um grupo social, seja a rua, a vila, o bairro e compreender que o respeito é o único caminho possível para sobreviver. E há aqueles que acreditam que a política não faz parte de suas vidas. A esses, a ignorância, o medo e o ódio costumam visitar, em intervalos regulares. Clamam por justiça, mas estabelecem pesos diferentes entre mortes e vidas. A esses ofereço apenas, nesse tão longo texto, meu mais profundo silêncio...

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Ah!O sagrado.E sua inevitável aura de utopia e sangue. Por entre nossos passos, milhares de sons, ancestrais, pungentes, galgando a história,tijolo a tijolo... Enquanto caminho, ouço o murmurar das vozes, antevejo as cabeças baixas,as mãos postas, os pedidos saindo a medo da boca, o olhar fechado,doloroso...Aqui e ali,alguns joelhos tocam o chao, penitentes. Mas é a alma que se cuva diante do belo, dos fragmentos de azul e dourado, das paredes infinitas.Ali, por alguns instantes, fé e arte se tornam uma coisa só,na curva do tempo,aguardando mais um piscar de olhos da história.







terça-feira, 28 de novembro de 2017

memória,chuva e viagens no tempo

Há quem diga que os afetos são coisa dos sensíveis, gente muito louca e sonhadora.Eu, modestamente, penso que lhes cabe parte fundamental do humano,uma vez que somos e não podemos deixar de ser, seres simbólicos por natureza ou (in)felicidade..Assim, persiste no que somos uma mistura de cheiros e sons, de palavras e músicas que entranham na carne e, por vezes,nos movem de lugar,propondo verdadeiras viagens no tempo...A ideia nao é nova e foi suficientemente bem observada por gente boa como Bergson e que tais, para eu me dar o direito de somente flanar superficialmente pelas ideias. Sobretudo,quando a memória atravessa a rua, chega até você. Sem avisar,no meio do caos do centro do Rio,entre poças de água e sons de carros,um perfume me levou ate Santa Teresa, na casa da minha avó, com o barulho suave dos passos no piso de madeira, na modorra familiar do pós-almoço..A tv ligada solitariamente na sala e o sol de um dia cinza criavam sombras da parede de pedra e o vento que empurrava as cortinas para fora.Enquanto eu esperava a hora de subir a rua e comprar o pão, sentia o aroma cítrico do pós-barba do meu tio,saído do banho,msiturado ao feijão e arroz que rescendia na mesa e ao aroma da terra molhada das plantas da minha avó..Era o mesmo cheiro das idas ao cinema nos sábados, ou das vezes em que ele chegava do trabalho,recebia o meu invariável bilhetinho,pedindo pra ser acordada(me parecia uma magia incomparável,acordar no meio da madrugada)por ele e dar um oi antes de voltar a dormir.. Enquanto ouço o alarme do relógio da minha avó tocar,um ruído atravessa a sala.O freio do ônibus na rua ao lado.Estou de volta à Rua Presidente Vargas, na chuva,em um novembro igualmente cinzento,mas sem as memoóias afetivas da minha infância.

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

morte, substantivo feminino

morte substantivo feminino 1. interrupção definitiva da vida de um organismo. 2. fim da vida humana. Ao receber a notícia da morte de alguém seria justo que entendêssemos que tal vida se extinguiu, acabou.Assim, cada pensamento, vivência,memória, deveria morrer também, apagando por completo a passagem desse sujeito pelo planeta...Mas e quando a pessoa em questão viveu plenamente, amou com paixao,dedicou cada um dos seus dias a lutar por um mundo melhor, deixou que seus olhos brilhassem de alegria, diante de uma novidade, ou de raiva por uma, entre tantas injustiças?Além disso,perpetuou-se em descendentes, formados nos mesmos sonhos?Nesse caso diriamos, que essa pessoa nao morreu, posto que sua imagem,suas ideias, continuam vivos, nos ecos da sua fala, nas pessoas que amou, nos sonhos ja realizados e naqueles ainda por realizar..E assim pensando, nos veriamos como eternos,cabendo ao fenomeno da morte apenas o beneficio da saudade...

domingo, 13 de agosto de 2017

Sobre saquinhos de pipoca. E pessoas.

Dia desses recebi na minha timeline a informação de que uma mãe solicitara a retirada do pipoqueiro da frente da escola, porque seu menino não podia comer mais a guloseima e ela não sabia dizer não...Então o problema deveria ser solucionado com o fim das pipocas para as demais crianças. Corta para o dia dos pais. Tenho acompanhado ao longo do tempo os crescentes debates sobre o dia das mães, dos pais e das avós. Muita gente argumenta que as festas fomentam o trauma das crianças, porque constroem a ideia de um modelo de pai e mãe para famílias cada vez mais plurais. Justo. Outro argumento também bastante plausível é que mães e pais trabalham em tempo integral em muitas das famílias e as tais festas tem lugar em dias e horários proibitivos. Por fim, há ainda um argumento que fala sobre a ausência paterna/materna, seja por falecimento ou abandono.Agora vamos lá, por partes, como pretendia Jack, ao argumento número 1. Falando sobre abandono, é possível entender que, de modo algum tal ausência seria compensada pela supressão da festa. Ao contrário. Ele perpetua em festinhas de aniversário, encontros, formaturas, apresentações de dança... A eliminação de uma festa não resolve um problema que é o abandono... Na urgência de minorar o sofrimento totalmente justificado de nossos meninos estamos excluindo o pipoqueiro, quando o problema não é a pipoca. Não eliminaremos o trauma de crianças com a eliminação de uma festa, mas com a criação de filhos mais sensíveis à família (qualquer que seja ela), que se tornarão pais presentes e que, independente da dissolução do casamento, continuarão participando da criação dos filhos. Não só no dia dos pais. Mas em todos os dias. O texto já está grande, mas ainda sobra tempo para pensar que a eliminação da festa das mães também não criará meninos e meninas mais tolerantes. Será a ideia de que o lugar de mãe pode ser ocupado por tias, tios, avós, pais e todo aquele que ocupar tal lugar afetivo. E por que não chamar avós, tios etc., para a festa das mães (e dos pais) e fazer também uma grande festa da família, com tios e primos e amigos que participam dessa família? Aliás, por que afinal estamos nos preocupando com as festas e não com a criação dos meninos nos outros 364 dias do ano? Seria por medo de reconhecer nossas falhas, admitir nossa intolerância com outros modelos de família e relacionamentos além de nossa curta compreensão? Por que se chegarmos a esse ponto entenderemos finalmente que crianças podem sim ser criadas por mães e pais, casais de mães, casais de pais, avós e tios e amigos e todos aqueles que se responsabilizarem permanentemente por esses meninos? Aí ficará fácil entender que a festa das mães pode ter mães e pais e tios. Porque homenageia as mães de filhos de suas próprias barrigas. E de outras barrigas. E as pessoas, de todos os sexos, gêneros, identidades, identificações, que também exercem sua maternidade com muita coragem em um país onde ainda usamos a expressão "mãe solteira" e exaltamos os pais/mães e companheiros (as) que se relacionam com mulheres/homens com filhos, como se fosse o extraordinário e não o cotidiano entre adultos. Relações vêm e vão. Transformam-se. Filhos são permanentes...Na pressa de reconhecer o óbvio, que é o fato de que somos (e sempre fomos)uma sociedade muito diferente do que pensou por certo tempo a publicidade e na pressa de mudar, jogamos fora a pipoca e o pipoqueiro, sem pensar onde está verdadeiramente o problema. E se me permitem uma digressão pessoal, fui "mãe solteira”, divorciada e assim, “fora do padrão" nessa mesma sociedade...Sofri por não estar presente em festas das mães que aconteciam no horário de trabalho. Já frequentei aniversários em que eu era o objeto de curiosidade, seja pela idade ou pelo estado civil...Ser mãe (da própria barriga ou não)não é tarefa para principiantes...Vez por outra fraquejamos. É justo que tenhamos um dia pra receber um beijo, uma colher de pau(precisamos problematizar os presentes de dia das mães,urgente!),um pano dar prato, um desenho tosquinho, que guardaremos para todo o sempre e exibiremos diante de namorados, amigos e afins( para desespero total da cria, diga-se de passagem ). Também é justo que todo aquele que se reconhecer como mãe possa receber tal homenagem. Necessário que cada mãe e pai (qualquer que seja sua forma de exercê-la, desde que com afeto) entenda que seu lugar de maternidade não está somente vinculado à genética(não basta ser tem que participar) e que, tomara Deus, possamos ter muitas festas das mães,pais,avós com referências cada vez mais múltiplas,sensíveis,inclusivas... Feliz dia dos pais a todos aqueles que se identificarem com o título . Bom restinho de domingo

quinta-feira, 27 de abril de 2017

no coração da loucura

Para chegar ao coração da loucura é preciso caminhar. Dobrar as esquinas, entre ruas não nomeadas, seguir adiante frente a informações imprecisas e moradores que certamente não saberão indicar uma direção correta, prosseguir por entre as grades do hospital psiquiátrico Pedro II, atravessar o jardim permeado de folhas mortas, virar à esquerda, cruzar a sala do acervo do Museu do Inconsciente e ali, no final do corredor, acessar o acervo das obras realizadas pelos artistas que residiram no Instituto Nise da Silveira. Ao entrar na sala, cheia até o teto, de obras as mais diversas, começamos a mergulhar no oceano profundo da loucura. Em cada pincelada, as cores, intensas, desesperadas, nos encaram do alto das molduras pregadas nas paredes e nos mostram aquilo que somos: iguais, em nossas emoções e medos. Pequenos e frágeis, diante do outro, dotados de uma magia estranha, poderosa, quando mergulhamos em nosso interior ...Crueis, quando tentamos normatizar o que o outro pode ou não pode ser....Diante de meus olhos vejo duas esculturas, lado a lado: a primeira, de traços harmoniosos, branca, com curvas sinuosas e precisas. A segunda, uma massa disforme, resultado da lobotomia no autor de ambas as obras. A diferença entre as duas obras ressoa como um tapa na cara, uma interrupção abrupta do fluxo de arte que provavelmente escorria pelas mãos do escultor, impedido permanentemente de criar. Uma bela contribuição da sociedade em prol da ordem e do progresso.#soqn Ao avançarmos no jardim, inspirada pelas palavras do guia, imagino o amontoado de corpos, antes da Dra. Nise da Silveira colocar seus pés ali. Um pouco antes dela, o espaço já fora uma horta para mulheres condenadas, confirmando o histórico do lugar para aprisionar corpos. Mas esses mesmos corpos, encarcerados, não conseguiam ficar presos de todo. Era ali, na sala de terapia ocupacional que os internos libertavam-se, ganhavam asas, fugiam das limitações cotidianas, mergulhavam dentro deles mesmos...O resultado está ali, nas milhares de telas e esculturas armazenadas no museu...Em cores que grudam em nossas retinas, em figuras de sonhos, imagens de sensações, mandalas diversas.... Tudo pulsa...Como se acompanhando o pulsar das obras, ouve-se o som de um batuque, no fundo do quintal...Seguimos até lá e, chegando no Instituto Travessias, somos invadidos por uma profusão de cores, som e movimento...Entramos no momento da apresentação de um grupo de carimbó e a sala se enche de chitas, cetim vermelho e chapéus de palha. A ordem é clara: todos ao centro da roda. É proibido ficar parado. Uma saia florida, como de costume, me encontra e, sou convidada a dançar. ...Quem seriam os loucos, os profissionais de saúde, os visitantes? Estamos todos misturados, balançando nossos corpos e girando sem parar ao som do carimbó. Ali, no meio das saias e mãos que giram, reside o coração da loucura, algo impossível de diagnosticar ou mesmo de localizar em uma pessoa qualquer.Sacwrese somos loucos, somos todos e juntos.

segunda-feira, 20 de março de 2017

Sobre narrativas e memórias

O que vocês pensam, quando imaginam uma aula de doutorado? Muita teoria, digamos assim, professor em sua mesa, textos científicos, silêncio? Pois é, eu também pensava isso. Até hoje. Chego atrasada ao 11ᵒ andar da UERJ, subindo os milhares de quilômetros (pelo menos para mim) de rampas que me separavam da sala de aula, procuro o local correto, erro a porta, volto ao corredor, me desespero porque estou 35 minutos atrasada em uma aula com um professor desconhecido, em um programa que não é o meu. Percorro os longos corredores do andar, tento uma porta e me deparo com uma sala de aula cheia. Paro na porta. No meio da sala organizada em roda, uma menina, um livro cheio de ilustrações na mão, contava uma história para os demais alunos. Devo ter feito uma cara de espanto tão grande que provocou olhares, o que me fez perguntar: aqui é a aula do professor fulano? Era. Me recolhi ao fundo da sala e esperei-a terminar a narrativa, que falava da importância das memórias...Já começava a pensar em como ia sair da sala, pensando tratar-se de um engano, quando o professor tomou a palavra, se apresentou e pediu que nos apresentássemos. Antes, pediu que fossemos até a mesa que - agora eu notava- estava cheia de objetos, brinquedos inclusive... Em silêncio, cada um pegou uma coisa e voltou para seu lugar. Um por um, fomos falando dos objetos que estavam em nossas mãos, relatando um fato curioso, uma lembrança que nos veio à cabeça através dele...Aos poucos, fomos ouvindo as histórias de cada um, tornando-as nossas, conhecendo um fragmento da vida de todos os alunos...Finalizada a dinâmica, o professor retomou a palavra e começou a falar de memória, do tempo da vida, do intervalo entre a percepção e as ações, onde cabem todas as coisas, entrelaçadas por memórias. E eu, que vinha de uma certa implicância com o universo do autor que seria estudado, me rendi aos encantos do tempo, justamente (vejam só a ironia), quando, dizem, inicia-se a era de Saturno, Deus do Tempo. Mas, ao contrário do que se pensa, Saturno não é somente o tempo cronológico, mas o tempo da percepção e dos afetos. Em nossa vivência no mundo, a cada passo, somos afetados por pessoas e coisas, criando laços de tempo e movimento que se tornam, inadvertidamente, memória. Contar uma história é resgatar, entre sentimentos e imagens, fragmentos de tempo e experiências, que juntamos às linguagens mais diversas, tornando-as comuns. O que torna a narrativa mais bela não é somente a escolha sistemática de palavras para compor nossas frases, mas o quanto nos esforçamos para fazer dessas histórias um lugar compartilhado, de modo que cada um que ouça possa colocar um tanto de si ali, se apropriando também de um tantinho de nós. Para isso, mais importante do que saber falar, é esforçar-se para ouvir. Na troca afetiva que se dá, a comunicação, como espaço entre, constroi pontes entre os sujeitos, tornando-os parte de um tempo em comum. E nos tornamos eternos porque, ao compartilharmos um tanto de nós, marcamos e deixamo-nos marcar pelas memorias que chegam até nós...Se cada história se tornará um livro, um filme ou um post, isso ficará a cargo de cada um...O importante, talvez a lição mais relevante de toda a experiencia, é não apressar o intervalo de percepção, em benefício de uma resposta rápida. Somos maiores, na medida em que nos permitimos ouvir as engrenagens de nossas sensações e memórias e emaranhá-la, em um tempo que não é possível controlar, em uma trama irremediavelmente afetiva, com todo aquele que cruzar nosso caminho...

quarta-feira, 8 de março de 2017

8M

Da marcha que começa nos murmúrios, nos rostos pintados, nas mães,amigas,irmãs,colegas de trabalho,que caminham pela rua...No meio da praça as policiais,todas mulheres, garantem o desvio do tráfego...Nas escadas, nos bares,nos museus, aparecem aqui e ali as bandeiras, as bandanas,os cartazes começam a se juntar,indo da calçada pra rua...Engana-se quem pensa que é uma marcha só de mulheres, no sentido restrito da coisa...São muitas,lindas em sua diversidade, vestidas de vermelho e verde,de mãos dadas com companheiros e companheiras, crianças,meninas,idosas, LGBTQ e tantas outras cores que se perdem na multidão..Alguém me oferece um adesivo,enquanto um senhor,vestido de enfermeiro, carrega uma maca com uma placa onde se lê:"fim ao feminicidio"..As rodas de danças,os tambores reunidos, das senhoras sentadas na praça às meninas que fazem jogral em meio ao povo que toma cerveja, a ordem é ocupar a cidade..O evento,enquanto estratégia política é de todos e para todos,fazendo do feminino,um exercicio de ser plural..





sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Trapézios

Que os monstros dos mares do agora, não turvem nossa visão e a cegueira do momento não limite nosso olhar para dentro de tudo. De tudo que mereça nosso movimento nos encaixes de se saber encontro sempre.Encontro nos momentos de escuta, encontro nos momentos de fala.Encontro de se reconhecer eixo de pés fincados nas areias de seu espaço.Onde latitude e longitude se reinventam para abençoar o nascer da estrela.Estrela feita de vida, construída no suor dos corpos que buscam a liberdade, que respira sonho e vive na fé do que não se pode saber.Saber não é nada frente a expansão do sentir .Sentir outro, sentir ontem, sentir presente na grandiosidade frágil da imaginação.Sou o que imagino e imagino galáxias no infinito da musica que não para de preencher o meio.Meio feito de nós, meio feito de historias e falas que me conduzem ao lugar do intuir vida .Vida que pulsa nas esquinas que não posso ignorar.Não há potencia na utilidade sem verdade.Não há horizonte no caminho que se apequena no medo de não ser.Seja, seja e se reinvente no trilho do eu dentro de si.Nas entrelinhas das engrenagens enferrujadas, descrentes de se poder transmutar a vida em seu estado poético, o espaço se confunde com o tempo do respirar útil.Estagnada num espiral de expansão com o mundo mas sem sintonia com a respiração de seu ritmo.Ritmo de saias rodadas e sorrisos largos, ritmo de silêncios no compasso da escuta do mundo e das imagens do nós.Dentro de si cabe o mundo, com seus conflitos , dores, alegrias, vozes,cores...Mas e no mundo,cabe a si?Transborda o eu na entrega da vida farta.Vida feita de água, na condição sutil de ser fluida, nas correntezas do sentimento expandido pala alem de si e dentro de tudo. Impregna de sentido o nascer de outro lugar.Lugar de dialogo com o tempo, que se reinventa na estrutura do que nunca se foi, mas sempre se é.e será para sempre. O eu que habita em mim por Debora Restum Porque no fundo era fácil, o tempo todo... Era quase como subir um trapézio, degrau a degrau, sem pensar, que lá embaixo, o público esperava um movimento arriscado. No fundo, tu sabias que não havia caminho distinto do que subir a escada, pé ante pé, esquecendo o burburinho das pessoas, que, aos cochichos, pediam que não subisse, que não subisse mais, que ficasse aqui só mais um pouco, onde era confortável e calmo. Mas era ali, no desconhecido intervalo entre um degrau e outro que o pulsar da vida, entre sangue e suor, existia. E nunca antes houve dúvida. O caminho era esse. Nas tardes de leitura, no virar das páginas, nas frases que te machucavam desde sempre, na emoção de ouvir a palavra que entrava pelos ouvidos e ia alcançar a ponta das tuas mãos... Enquanto vai te tornando mais e mais surda ao que te sussurram, agarras com força a corda da escada, que balança perigosamente, no vento...e sobe ainda mais alto, até os rostos familiares se tornarem um borrão difuso e só sobrar no peito a voz de tua mãe, no chão da sala, te contando da vida dos homens e o som da voz do teu pai, no fim do dia, na beira da tua cama, e apresentando as histórias dos livros. Nunca houve outro caminho, nem poderia haver. Enquanto buscavas terras distantes, de amores e saberes, aqui dentro, teu mundo restava, enorme. O tempo todo a escada, no centro do picadeiro, estava ali, para que subisses. E tu atrasastes a hora, rondando o lugar, fazendo de conta que não era contigo... Enquanto fechavas tuas próprias histórias em um baú dentro do peito, percorrias com os olhos as palavras de outros, se perdia e se encontrava. E aí foram os anos. Muitos de não contar... Enquanto isso, a vida. O doar-se para o outro, o aprendizado doloroso do sofrimento. E hoje, quando tudo te diz não, passados quase 4 décadas de vida, percebe que nunca houve outro caminho... Em silêncio pede licença. Se afasta de todos...fica só. Percorre o lento caminho até o centro do palco. Mãos firmes, sobe o primeiro passo, esperando cair. Os pés e equilibram. A cada momento, tens vontade de voltar. Mas sabes que não há caminho de volta. Alguém te chama. Não voltas o rosto. Persegue algo que não consegues ver. Sente. As vozes ficam mais baixas, viram um confuso burburinho. Pouco a pouco, o sentido da subida, o próximo degrau, torna-se difuso. Só sabes que precisa ir. Ainda e sempre. E então, num intervalo de silêncio, alcanças o topo. Uma pequena plataforma de madeira, no canto esquerdo do picadeiro. Só há espaço para os teus pés. Contemplas lá de cima teu universo, o percurso de cada dia... Alguém grita seu nome, pede que tenha cuidado. Afinal. Não há rede de proteção. tu apenas sorri. e mergulha. Por Tatiane Mendes

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Palavras..

Há um silêncio que só se ouve quando se está só e as palavras escondidas nas páginas de um livro vem dançar na tua cabeça. Enquanto tentas ter controle da leitura e pousar superficialmente em cada frase, elas vão pouco a pouco se inserindo em teu pensamento, captando tua atenção. Mesmo que busques mecanismos de desvio, observando a paisagem ou voltando os olhos em outra direção, elas permanecem ali, em estado de vigília, propondo combinações em versos e prosa. E então, enquanto estás distraído, elas entram, sorrateiramente, pela tua orelha, penetrando tua mente, acomodando-se em tuas memórias, revirando-as sem dó...E é ali, quando menos se espera que elas te prendem, corpo e alma, oferecendo frases e demandando tua atenção. Sem se dar conta, de repente, o silêncio se faz e as palavras, que estavam impressas em tuas mãos, mergulham em ti... Pronto. Já não te pertences mais. Estás preso, ao ritmo imprevisível dos versos, na desarmonia das estrofes, aguardando a próxima linha. Enquanto viras a página, não respiras mais. És todo expectativa e tensão. E então, ali, logo no alto da página, a primeira palavra estende as mãos... E o sentido, como mágica, se faz. Em vão baterão à porta, não atenderás ao telefone... O tempo, nesse momento, acabou de paralisar. Seus olhos, grudados no papel, percorrem as letras, em ritmo frenético... E do silêncio retumbante que se faz, o único ruído divergente é o leve som das páginas, que moves impaciente... É preciso que esse livro acabe – pensas- é preciso logo, pois enquanto ele durar, não és mais dono de ti... O que te move, que te faz respirar, é a poesia indefinível que repousa entre os versos, que te carrega como um vento forte, fazendo com que esqueças de tudo mais. E assim, página a página, frase a frase, intercalas impaciência e plenitude.. Tu só existes no intervalo entre capítulos. E então, na última página, quando ergues os olhos do livro, percebes que o sol se pôs, que as cortinas da janela voaram e as folhas se espalharam no quintal... O quarto está escuro, nada se move. Mas ali, dentro do teu peito as palavras ainda pulsam...e o silêncio, enorme, te preenche e aquece. És outro. Infinitamente maior... Nas tuas mãos, o livro fechado adormece, até o próximo leitor.

domingo, 20 de novembro de 2016

Quando o caos não gera estrelas brilhantes

A menina na escola termina seu último desenho. Ela se sente feliz, pois acabou a tarefa pedida pela professora. O pedido era para que todas as crianças, uniformemente distribuídas pela sala, desenhassem o que fizeram nas férias. A menina caprichou nas cores, gastou todos os seus azuis na página branca que ficou pesada de tantas histórias... O rosto suado pelo esforço de imprimir todas as cores do arco Iris em giz de cera grosso, as mãos multicoloridas, ela sorria um sorriso de covinhas, as bochechas ainda com restos de cores,o cabelo amassado, retorcido atrás das orelhas..A um sinal da professora, todos os alunos levaram suas composições à mesa grande...Era preciso escolher a melhor..Percorrendo com os olhos cada folha,a menina conseguiu identificar torres, igrejas, praias,todas representadas com riqueza de detalhes.. A professora, séria, ia passando de um em um, analisando as linhas, a perspectiva, um ou outro elemento. Súbito,olhou para ela.. Onde estava o seu, a professora perguntou. Atrás das costas,meio amassada nas mãos, a menina estendeu a folha pesada e colocou-a na mesa,junto aos demais..A professora analisou, franziu a sobrancelha, perguntou o que era.. A menina explicou... A professora pediu detalhes. A menina não tinha. O que tinha era uma profusão de azuis, que tomava toda a superfície do papel em nuances sem nenhuma forma ou detalhe.. Então era isso que tinha feito nas férias?Apenas uma grande mancha azul?Os colegas riram. A professora balançou a cabeça. Desse jeito seria reprovada em composição... Voltou ao seu lugar. Engoliu a recomendação de que deveria estudar a técnica, ou melhor, as técnicas, pois assim como estava jamais poderia concluir o curso... A menina abalou a cabeça e olhou o desenho onde, ao contrário dos demais, ela conseguia ver cada momento das férias... Dobrou a folha, guardou na mochila, foi cuidar da técnica. Aprendeu perspectiva, composição, todos os elementos da sintaxe visual. Foi considerada apta. Saiu da escola e foi cuidar da vida... Aprendeu Matemática, História, Português.Formou-se. Arranjou um emprego. Alugou um apartamento. Paga seus impostos. Vez por outra é vista comprando papel e tinta, quase sempre azuis, para usos inexplicáveis.. E o desenho,das férias,continua guardado no canto mais fundo do armário. O menino escondeu-se atrás dos amigos. Numa longa fila cada um deveria executar um movimento, sob a avaliação da banca. Eram muitos os pés, apertados nas sapatilhas, sobre o linóleo frio. Ao final da sala os três professores aguardavam... A cada passo que dava o menino sentia mais enjoo e vontade de sair correndo. Ballet era isso? Era por isso que aguentava cotidianamente a gozação dos irmãos e a indiferença do pai?Repuxou nervosamente a malha, ajeitou a sapatilha e alongou os braços. À sua frente os amigos pareciam calmos, enquanto ele queimava...Aquelas longas horas de exame não se pareciam nada com a sensação que teve ao ver pela primeira vez o solo do famoso bailarino, que o inspirou a entrar nas aulas de dança. Soberbo, absoluto, leve, o artista parecia voar,seus pés mal tocando o chão do palco.. Muito diferente daquilo que o menino sentia,como se suas sapatilhas estivessem pregadas no chão... Até que, de passo em passo, chegou sua vez. Pensou morrer, quando ouviu seu nome ser chamado... Caminhou pela sala sem ter certeza de que ainda tinha pernas. Posicionou-se na barra.. E esperou..Não conseguiu ouvir nenhuma das ordens da professora. Apenas lembrava brevemente da ordem dos movimentos, mas não tinha certeza alguma se estava executando-os ou apenas sacudindo braços e pernas, sem direção alguma... A tortura durou meia hora...Assim que foi dispensado, o menino levantou-se, pegou a mochila,disparou pelo corredor e não parou mais de correr,até chegar em casa.Lá escondeu as sapatilhas no canto mais fundo do armário e nunca mais mexeu...Os anos passaram e o menino cresceu.Viajou bastante.Conheceu muitos lugares diferentes...Jantou em restaurantes exóticos.Dirigiu carros incríveis.. Vez por outra assiste a um ballet, da frisa mais cara, de onde sai encantado, olhos vermelhos, mãos retorcidas de dor.. As sapatilhas,contudo,continuam guardadas no armário. A menina repousou o rosto nas mãos. Era quase meia-noite e a festa continuava animada. Um a um ela via cada um dos seus amigos partirem para a pista de dança, mas ela continuava ali, sozinha..O medo era tão grande, que não conseguia arriscar um passo..Afinal de contas,não fora ela mesmo que dissera que a dança não era importante,quando saíra da última aula?Não conseguiria mesmo aprender as técnicas, o corpo não dava conta de tantas regras e ela se sentia inadequada e incapaz. Fora sempre essa a sensação que a expulsara de todas as aulas de dança que fizera. Ao final da última se convencera de que a dança, definitivamente não era pra ela...Tinha sido esse o diagnóstico da professora, reforçado pelos parentes e amigos,certos de que ela seria ótima em qualquer outra área. Mas era ali,no ritmo da música,no meio do salão, onde o coração pulsava e cada célula do seu corpo pedia pelo movimento,qualquer que fosse ele... Ao canto ela podia ouvir os risos das amigas, condenando qualquer coisa diferente de seus narizes... Ensaiou balançar os pés, mas derrubou uma das cadeiras próximas, chamando atenção para si.. Ouviu risos da mesa ao lado e o ar condescendente do garçom,que lhe oferecera um copo de guaraná...respirou fundo e tomou uma decisão. Levantou da cadeira. Caminhou meio a medo,para o centro do salão e ali fechou os olhos,sentindo o ritmo da música tomar seu corpo.. Começou a balançar-se lentamente,quando ouviu risadas..As moças da mesa ao lado,não havia dúvida, a olhavam e riam...Gelou o peito...Respirou fundo. Baixou os olhos.Tremia...Olhou as mulheres muito profundamente...Virou a cabeça. E saiu do salão...Foi para casa.As mulheres e os salões de dança nunca mais a viram, mas os vizinhos,aos domingos, costumam ouvir um arrastar de móveis e um som de música,abafado,sair de seu apartamento.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Recortes

Do vinco das roupas que acabaram de ser passadas. As mãos que ajeitam, nervosamente, a camisa, de frente para o espelho. O perfume de sabonete, misturado aos odores de limpeza, do chão que acabou de ser polido. O som do salto dos sapatos, que percorrem apressadamente o corredor. A maquiagem rescendendo no rosto, enquanto as mãos, trêmulas, ajeitam o penteado no reflexo do celular. E a alma nova, que transparece ao redor, o sorriso nervoso, ensaiado ontem no espelho, depois de uma semana de correria e espera. É hoje,as 10h,na abertura dos portões,que começa um novo ciclo,de contatos, frases,pessoas e a esperança,essa sim que não cabe dentro do peito, porque é natal,oras,época de renovar os caminhos,de molhar os pés no mar e agradecer o rumo diverso,sobre o singelo nome de “novas oportunidades para o período natalino”. Já de longe os recém-contratados são fáceis de identificar, basta olhar. Estão sorrindo, transbordam boa vontade, anseiam por serem úteis. Aos poucos, a loucura do consumo e o velho hábito da impaciência humana acabarão, infelizmente, por levar-lhes o restante de energia que tiverem. Mas,ah!,enquanto têm esperança e anseiam por um novo dia, como é maravilhoso ver-lhes, já no início do dia, as baterias recarregadas, procurando com os olhos os primeiros clientes. Daqui,do café onde escrevo,da confortável posição de espectadora que me coube,eu queria ter a mesma sensação de recomeço que consigo perceber em seus olhos. Que importa que o sistema os vá oprimir?Que o transporte vá lotar?Que o salário não vai ser suficiente?Nesse breve momento que congelo em minha retina, eles tudo podem, porque esperam.